Resumo
Em 2020, em antecipação da 49th Medieval & Renaissance Music Conference, calendarizada para o ano seguinte em Lisboa, fui convidado pelo CESEM (encarregado da organização daquele evento) para apresentar em concerto um programa com música portuguesa de finais do século XVI. O concerto, que viria integrar dois agrupamentos (Capella Patriarchal e Cornetas & Sacabuxas de Lisboa), sob a minha direcção, veio a realizar-se na igreja de São Roque, em Lisboa, no dia 7 de Julho de 2021.[1] A perspectiva de conceber um programa que ilustrasse a prática da música sacra em Portugal no final do século XVI levou a uma escolha ponderada do repertório e dos efectivos musicais a utilizar. Para além disso, o facto de o concerto ter sido registado em vídeo, com vista à sua posterior inclusão no projecto Performance e Contexto da Escola Superior de Música de Lisboa – e, desde logo, a circunstância de se integrar num dos mais importantes eventos do género a nível internacional – levou a uma reflexão – a priori e a posteriori – sobre as opções tomadas. Como seria de esperar, essa reflexão acabou por não se confinar ao caso específico daquele concerto, incidindo também em áreas mais gerais, como o estudo do património musical português, ou a problemática da chamada interpretação historicamente informada.
A redescoberta da polifonia portuguesa
A musica sacra produzida em Portugal ao longo dos séculos XVI e XVII foi – sabemo-lo com segurança hoje – de uma vastidão e qualidade consideráveis. Contudo, a justa percepção desta realidade foi, durante muito tempo, dificultada por diversos factores. O terramoto de 1755, com a consequente destruição da Real Livraria de Música, situada no torreão do Paço da Ribeira, ou a extinção das ordens religiosas em 1834, por ordem do recém-instalado governo Liberal, com a inevitável dispersão (e, em vários casos, destruição) do património dos conventos, foram frequentemente apontados como causas de uma certa exiguidade do património musical português conhecido. No entanto, pese embora a perda inevitavelmente provocada por aqueles eventos, o progressivo desenvolvimento da investigação musicológica veio trazer à luz uma realidade diferente, através do estudo – ou, pelo menos, da identificação – de um vasto repertório conservado em fontes impressas ou manuscritas.
Ao longo da segunda metade do século XX, foram gradualmente postos à disposição do público interessado, catálogos dos fundos musicais de diversos arquivos e bibliotecas do país.[2] Simultaneamente, em grande parte através do esforço da Fundação Calouste Gulbenkian, foram publicadas edições críticas de várias obras de polifonistas portugueses quinhentistas e seiscentistas,[3] o que levou a uma significativa divulgação de algum desse repertório, mesmo junto de agrupamentos não profissionais. Paralelamente, o desenvolvimento da investigação musicológica[4] permitiu traçar com maior clareza o percurso da História da Música em Portugal, através de um conhecimento mais aprofundado da vida dos compositores e das práticas musicais a eles associadas (Nery e Castro 1991, [7]).[5] A partir do final do século passado, o número de edições críticas de música histórica, assim como o número de instituições envolvidas no processo editorial, aumentou significativamente. No entanto, apesar desse notável avanço, o desnível entre o património musical identificado e aquele passível de ser facilmente estudado – ou seja, acessível em edições modernas – é ainda hoje bastante acentuado.[6]
É ao longo do percurso histórico atrás descrito que nasceu e se tem movimentado em Portugal a prática performativa da chamada «Música Antiga». O repertório seiscentista despertou, desde cedo, o interesse dos intérpretes, como o provam, a título de exemplo, as transcrições de Filipe Rosa de Carvalho (1892-1980) – indubitavelmente preparadas com vista à execução em concerto – de tentos e versos para órgão de Manuel Rodrigues Coelho ou de sonatas de Carlos Seixas,[7] ou as edições de obras de Francisco Martins ou de D. Pedro de Cristo, preparadas por Mário de Sampaio Ribeiro (1898-1966) (Ribeiro 1954; 1958). Qualquer destes casos parece ter sido mais motivado por uma veneração do passado, do que por uma preocupação de reconstituição histórica: as peças de Coelho eram tocadas por Rosa de Carvalho num órgão sinfónico e as obras dos polifonistas portugueses eram interpretadas por Sampayo Ribeiro (e por muitos outros que se serviam das suas edições) segundo uma estética coral romântica.[8]
Só na década de 1970 começaram a surgir em Portugal grupos exclusivamente dedicados ao repertório antigo e à execução em instrumentos históricos.[9] A crescente divulgação e aceitação desse tipo de abordagem levou ao despertar, em diversas zonas do país, de grupos com diferentes formações, em muitos casos fruto da iniciativa de jovens músicos, cuja formação decorrera em instituições europeias especializadas na interpretação historicamente informada. Mas, ao mesmo tempo que a multiplicação dos intérpretes com formação especializada e o desenvolvimento da investigação parecem facilitar a abordagem de músicas do passado, a responsabilidade perante a identidade da música a interpretar, aumenta: a informação disponível acerca da música de outras épocas é agora impossível de ignorar. Para além disso, o próprio público (ou, pelo menos, uma parte dele), quer por curiosidade intelectual, quer por influência da difusão do movimento da «Música Antiga», alterou os seus critérios de escuta e espera algo diferente dos intérpretes.
Um concerto de polifonia portuguesa tardo-quinhentista
Desde o início, ficou decidido que o repertório para o concerto de dia 7 de Julho de 2020 proviria de compositores cuja actividade se centrara em Lisboa.[10] Após uma primeira reflexão, a escolha do repertório incidiu sobre a liturgia do Domingo de Ramos. Três factores tiveram um peso substancial nesta decisão. Em primeiro lugar, o facto de a Semana Santa ser o momento litúrgico sobre o qual mais frequentemente os compositores se debruçaram garantia um muito mais vasto universo de escolha. Em segundo lugar, uma das mais importantes fontes de polifonia portuguesa dos finais do século XVI – o chamado Livro de São Vicente[11] – tem origem em Lisboa e está ligado a um dos mais significativos compositores da capital: Frei António Carreira.[12] Finalmente, a liturgia de Domingo de Ramos, não estando abrangida pelas restrições ditadas pelo Concílio de Trento em relação à música na Semana Santa (as quais só se aplicavam de Quinta-Feira Santa a Sábado Santo), admitia o uso de instrumentos, o que permitiria aliar um certo rigor musicológico à garantia de um maior impacto (tanto sonoro, como visual) do concerto.
O programa centrou-se, assim, na Missa para Domingo de Ramos de Frei António Carreira, incluída no Livro de São Vicente,[13] à qual se adicionaram outras peças daquela liturgia, como o responsório In monte oliveti de Frei António Carreira e a antífona Pueri Hebraeorum vestimenta de Filipe de Magalhães (presentes no mesmo manuscrito), ou a antífona Ave Regina Caelorum de Duarte Lobo, para além de intervenções em cantochão e de algumas obras instrumentais de António Carreira «o Velho», pai de Frei António Carreira.[14]
A qualidade dos materiais a que os intérpretes têm acesso na abordagem de repertório histórico – sejam facsímiles[15] ou, como é mais frequente, edições críticas – pode ser determinante para o resultado da execução. Independentemente de eventuais erros de transcrição, o critério de uma edição – ou a falta dele – pode perturbar, ou mesmo deturpar completamente, a compreensão do texto original. Assim, uma das primeiras preocupações na preparação do concerto foi a escolha das edições a utilizar. No caso das obras retiradas do Livro de São Vicente, foram usadas as transcrições efectuadas por João Pedro d'Alvarenga (2005, pp. 279-281, 288-290, 302-314)[16] e, no caso da antífona Ave Regina Caelorum de Duarte Lobo, a reconstituição, a partir das partes impressas, realizada por José Abreu (2002).[17] As intervenções em cantochão foram retiradas de dois impressos aproximadamente contemporâneos das obras polifónicas escolhidas (Graduale 1546; Manuale processionum 1569) e as obras instrumentais foram por mim directamente transcritas do manuscrito 242 da Biblioteca da Universidade de Coimbra.[18]
A distribuição da música pelos cantores e instrumentistas foi também alvo de cuidadosa reflexão. A iconografia (tanto a que retrata situações reais, como a que ilustra músicos celestiais), assim como os registos de pagamentos e os regimentos das catedrais, evidenciam a participação de instrumentos ao lado das vozes (ver, por exemplo, Alvarenga 2015). A prática da dobragem (ou mesmo da substituição) de linhas vocais é também descrita em alguns relatos,[19] embora, na maior parte dos casos, não seja possível identificar a função que cada instrumento desempenhava. O tipo de instrumentos utilizado é, no entanto, frequentemente descrito, ocupando os instrumentos de sopro (em especial a corneta) um lugar de destaque.
[...] as Vesporas forão de canto d'orgaõ dos Padres que auia mtos destros, o mestre da capella que dizem que sabe mto, e outros frades contrabaixos e capados, de Toledo veo, o capado afamado e hua corneta estremada, e o tanhedor Penhalozo [...] o prº Salmo samlearaõ, a estante, os frades, o segundo cantou o capado nos orgaõs cõ a corneta, e tangia o orgaõ Penhaloza e cantou mto bem, o terceiro Salmo cantaraõ os frades de canto chão sem orgaõ mto baixo, e sem orgaõ canto de orgaõ, o quarto e quinto tangeo Afonso da Silva, e cantou Domingos Madr.ª Algũs versos só e outros com Alexandre de Aguiar e a corneta e pasmaraõ os Señores Castelhanos e ficaraõ perdidos polla musica Portuguesa, e disseraõ grandes couzas della [...][20]
Estas descrições dão a entender que a intervenção dos instrumentos, quer no contexto das obras vocais, quer a solo, era frequente. Por outro lado, sugerem uma certa liberdade na escolha dos efectivos musicais: polifonia sem órgão, uma voz com órgão e uma corneta, etc. Esta liberdade de escolha podia ser usada ao longo de uma mesma peça com várias secções, como sugere esta passagem do Regulamento da sachristia da Sé de Évora:
O efectivo usado no concerto constou de quatro vozes (soprano, alto, tenor e baixo) e quatro instrumentos (duas cornetas e duas sacabuxas), para além de dois órgãos positivos. O órgão grande da igreja de São Roque foi usado apenas na primeira peça do concerto.[22] A seguinte combinação de vozes e instrumentos foi usada na Missa de Frei António Carreira:
Kyrie |
Kyrie... (polifonia) |
vozes e órgão |
Kyrie... (cantochão) |
vozes |
|
Kyrie... (polifonia) |
vozes e instrumentos |
|
Christe... (cantochão) |
vozes |
|
Christe... (polifonia) |
vozes e órgão |
|
Christe... (cantochão) |
vozes |
|
Kyrie... (polifonia) |
vozes e órgão |
|
Kyrie... (cantochão) |
vozes |
|
Kyrie... (polifonia) |
vozes e instrumentos |
|
Credo |
Credo... (cantochão) |
vozes |
Factorem... (polifonia) |
voze e instrumentos |
|
Et in unum... (cantochão) |
vozes |
|
Et ex Patre... (polifonia) |
vozes e órgão |
|
Deum de Deo... (cantochão) |
vozes |
|
Genitum... (polifonia) |
voz (S), corneta, sacabuxas e órgão |
|
Qui propter... (cantochão) |
vozes |
|
Et incarnatus... (polifonia) |
vozes(sem instrumentos) |
|
Crucifixus... (cantochão) |
vozes |
|
Et ressurrexit... (polifonia) |
vozes e instrumentos |
|
Et ascendit... (cantochão) |
vozes |
|
Et iterum... (polifonia) |
cornetas, vozes (T, B) e órgão |
|
Et in Spiritum... (cantochão) |
vozes |
|
Qui cum Patre... (polifonia) |
vozes (S, A), sacabuxas e órgão |
|
Et unam, sanctam... (cantochão) |
vozes |
|
Confiteor... (polifonia) |
vozes e órgão |
|
Et expecto... (cantochão) |
vozes |
|
Et vitam venturi... (polifonia) |
vozes e instrumentos |
|
Sanctus |
Sanctus... (polifonia) |
vozes e órgão |
Pleni sunt caeli... (polifonia) |
vozes e instrumentos |
|
Benedictus |
Benedictus... (polifonia) |
vozes e órgão |
Hosana... (polifonia) |
vozes e instrumentos |
|
Agnus Dei |
Agnus Dei... miserere...(cantochão) |
vozes |
Agnus Dei... miserere... (polifonia) |
vozes e instrumentos |
|
Agnus Dei...dona nobis... (cantochão) |
vozes |
|
Deo gratias |
Superius 1º: corneta Superius 2º (cantus firmus): vozes Altus: corneta Tenor: sacabuxa Bassus: sacabuxa |
Tabela 1 – Distribuição de efectivos na Missa de Frei António Carreira
Combinações diferentes foram usadas no motete Turbae quae precedebant (a 5 vozes) de Frei Manuel Cardoso e na antífona Alma Redemptoris Mater (a 8 vozes) de Duarte Lobo.
Superius 1 |
voz |
Superius 2 |
corneta |
Altus |
voz |
Tenor |
voz |
Bassus |
voz |
Tabela 2 – Distribuição de efectivos em Turbae quae precedebant de Frei Manuel Cardoso
Superius I |
voz |
Altus I |
sacabuxa |
Tenor I |
corneta (à oitava superior) |
Bassus I |
sacabuxa |
Superius II |
voz |
Altus II |
voz |
Tenor II |
corneta (à oitava superior) |
Bassus II |
voz |
Tabela 3 – Distribuição de efectivos em Ave Regina Caelorum de Duarte Lobo
Os instrumentos de sopro foram assim usados, quer para duplicar as linhas vocais, quer para as substituir. À excepção da peça a oito vozes, onde cada órgão estava associado a um dos coros, as vozes eram geralmente duplicadas por um dos órgãos, sendo os dois órgãos usados nas secções onde os instrumentos de sopro também participavam. Nas partes confiadas às cornetas (mesmo quando duplicavam as vozes), foi favorecido o uso de ornamentação profusa, de acordo com o que se depreende dos tratados da época.
A quimera da «autenticidade»
Uma preocupação subjacente à preparação de um concerto desta natureza – e, por extensão, a qualquer interpretação historicamente informada – é a de tentar encontrar um resultado sonoro próximo daquele que presidiu à concepção original das obras. Esta tendência, que surgiu em meados do século XX, como uma reacção natural ao desajustamento evidente nas execuções de repertório antigo com meios e conceitos claramente herdados do século XIX, materializou-se no estudo exaustivo das fontes musicais e tratados das diferentes épocas, no restauro, reprodução e prática de instrumentos históricos e na criação de departamentos de investigação e ensino exclusivamente dedicados aquelas áreas do repertório. A «música antiga» ganhou progressivamente terreno nos circuitos de concertos e no mercado discográfico, criando um público próprio, muitas vezes totalmente dissociado dos frequentadores habituais dos espectáculos da chamada «música clássica».
Este percurso não se fez sem oposições. A primeira reacção às manifestações embrionárias do movimento da «música antiga» veio do statu quo – dos músicos educados numa perspectiva tradicionalista, segundo a qual os instrumentos actuais (assim como a técnica moderna) eram superiores aos anteriores. O repertório antigo seria, assim, beneficiado ao ser executado com meios mais «desenvolvidos» do que aqueles que existiam na época da sua concepção: «Rien de plus juste que d'honorer la mémoire de nos lointans prédécesseurs en mettant au service de leur pensée la richesse de nos instruments» (Widor 1925).[23] Para além disso, o músico que se dedicava (ou, pelo menos, que se dedicava inteiramente) à «música antiga» ou aos instrumentos «antigos» era frequentemente classificado de «limitado» e (pior ainda) de insuficientemente preparado ao nível técnico para abordar o repertório mais recente. Esta postura perdeu gradualmente força, com a crescente preparação teórica daqueles executantes, o âmbito da sua acção[24] e o seu domínio técnico dos instrumentos antigos (obviamente diferente da técnica moderna), os quais contribuiram para interpretações cada vez mais convincentes.
Die Werke offenbares sich von einer ganz neuen-alten Seite, und viele Probleme klären sich nun von selbst. So wiedergegeben, erklingen sie nicht nur historisch korrekter, sondern auch lebendiger, weil sie ganz mit den ihnen entsprechenden Mitteln dargestellt werden, und man bekommt eine Ahnung von den geistigen Kräften, die die Vergangenheit fruchtbar gemacht haben. Die Beschäftigung mit Alter Musik gewinnt so, über den nur ästhetischen Genuß hinaus, einen tiefen Sinn für uns. (Harnoncourt, 1982, pp. 17-18).
Nas últimas duas décadas do século XX, muitos intérpretes do mundo da «Música Antiga» atingiam o estatuto de «virtuosos» e partilhavam os grandes palcos internacionais, ao lado das estrelas tradicionais da música «clássica».
Este texto de 1990 – retirado da introdução de um dossier jornalístico que inclui entrevistas a Nikolaus Harnoncourt, Yehudi Menuhin, Gustav Leonhardt, Peter Schreier, Ton Koopman, Philippe Herreweghe e Marie-Claire Alain – parece resumir a transformação que os critérios de interpretação (das obras de Bach, neste caso) sofreram ao longo da segunda metade do século XX. Os «revolucionários» de há quarenta anos tinham-se convertido em paradigmas da interpretação.[26]
Mas, o artigo (tal como as diferentes opiniões dos entrevistados) indicia também as novas críticas que surgiam. À medida que o movimento da interpretação historicamente informada se desenvolvia e, sobretudo, à medida que o conhecimento sobre as práticas de execução nas diversas épocas se expandia (o alargamento do repertório abordado, juntamente com a crescente afirmação do músico com o perfil de intérprete-musicólogo, levou à gradual substituição da expressão «música antiga» pela mais abrangente «interpretação historicamente informada»), determinadas abordagens – ainda que «históricas» – passaram a ser consideradas «ultrapassadas».[27] Em última análise, a afirmação de cada geração de músicos parecia implicar, directa ou indirectamente, uma posição contestatária em relação à posição da geração anterior.
Esta marcação de posições levou, muitas vezes, a posturas bastante dogmáticas. Assim, paralelamente às críticas «internas», foram surgindo vozes que questionam os próprios argumentos em favor da interpretação histórica. A «autenticidade», um dos estandartes do movimento da interpretação historicamente informada, foi talvez o primeiro alvo. A questão colocada era: como podia alguém, por muito conhecimento que tivesse dos tratados de execução dos séculos XVI e XVII, ou por muito que recorresse a instrumentos antigos (originais ou cópias) e estudasse a sua técnica, garantir que a sua execução reproduzia o que fora imaginado há três séculos? Seria a «autenticidade» (aqui propositadamente colocada entre aspas) apenas um argumento utilizado de forma acrítica para apoiar uma nova tendência de gosto musical, ou mesmo uma nova estratégia comercial?
Those who persist in taking the claims of Early Music or "historical" performance at face value now do so under an onus. Conscientiousness has been raised. The claims cannot be merely asserted; they must be defended. (Taruskin 1995, pp. 4, 8).[28]
O que era aqui questionado não era propriamente a validade do movimento da música antiga, ou da interpretação historicamente informada, mas sim a fragilidade do conceito de «autenticidade» – «[...] the chimerical historical accuracy so many performers wish (or think they wish) to achieve» (Taruskin 1995, p. 9) – e a aparente leviandade com que expressões como «leitura autêntica» ou «intenção do compositor» eram usadas. O atrás referido sucesso comercial da «música antiga» (nomeadamente no âmbito do mercado discográfico) parecia alimentar a ideia de que a interpretação histórica era um fenómeno essencialmente contemporâneo, cada vez mais guiado pelo gosto do público (e pelos interesses das editoras) e menos pela genuína preocupação de alguns músicos.
De qualquer forma, ao longo das últimas décadas, os argumentos têm-se acumulado – numa e noutra direcção – ao ponto de se questionar de uma forma cada vez mais destrutiva o conceito de «música antiga», ou mesmo de o declarar completamente extinto:
Evidentemente, o pôr em causa a livre interpretação de uma obra – independentemente do conceito de «obra» – e, por outro lado, questionar o conhecimento da vontade do compositor, pode facilmente levar a um beco sem saída: «[...] if authority comes neither from the work nor from the composer, where are we to turn?» (Butt 1996, p. 324). A generalidade das críticas (ainda que construtivas) à interpretação historicamente informada é mais pronta a apontar problemas do que a apresentar soluções.[29]
De qualquer forma, o manancial de informação acumulado ao longo das últimas décadas acerca do repertório, dos compositores e das técnicas de execução dos séculos passados alterou inegavelmente a atitude dos intérpretes face à música dessas épocas. Um pianista, ao tocar Bach num piano moderno, não pode actualmente ignorar o que se sabe acerca dessa música – ou, se assim o decidir, terá que fazê-lo de uma forma consciente e assumida. Por outro lado, o intérprete de um instrumento histórico sente-se na obrigação de conhecer os mais recentes avanços da investigação e tê-los em conta nas suas opções, ainda que acredite que o resultado da sua interpretação esteja longe da forma como a música soaria quando foi criada.
Podemos, de qualquer forma, admitir que a recriação de um «som» idealizado há três ou quatro séculos é um objectivo inatingível. Para dar um exemplo da minha experiência enquanto organista, diria que a busca de uma sonoridade (e aqui refiro-me especificamente à registação) «historicamente acertada» para uma determinada obra é verdadeiramente quimérica. Excepcionalmente, podemos ter ocasião de tocar uma suite de Clérambault num órgão Clicquot ou um Praeludium de Buxtehude num órgão Schnitger (e, mesmo assim, esses instrumentos dificilmente estarão no estado original), mas, na generalidade dos casos, a possibilidade de encontrar um órgão contemporâneo de um determinado compositor e que mantenha ainda as características originais (admitindo que conseguiríamos saber com exactidão quais seriam as «características originais») é remota e, em muitos casos, impossível. O compromisso é, pois, inevitável. O intérprete – o organista, neste caso – terá que fazer uso dos seus conhecimentos, avaliar os meios disponíveis e tomar uma decisão.
Esta decisão final será sempre uma opção pessoal e reflectirá, em última análise, a identidade do próprio intérprete. O exemplo que dei atrás em relação à registação pode ser estendido a muitos outros parâmetros: a ornamentação, a dinâmica, os tempi, a escolha dos intrumentos e dos próprios intérpretes. No caso do concerto da Capella Patriarchal e das Cornetas & Sacabuxas de Lisboa, foi exactamente o que aconteceu. Sem dúvida, houve um especial cuidado na preparação dos materiais, na escolha dos efectivos e na fundamentação das opções interpretativas. No entanto, o resultado final representa uma opção pessoal, evidentemente enriquecida pela preparação dos cantores e instrumentistas, iluminada pelo estudo das fontes e das práticas de execução e influenciada pelas condições específicas do local. É essa característica eminentemente pessoal, que faz da performance do repertório histórico um acto criativo (ainda que consciente e informado) do intérprete. A música que se ouviu no dia 7 de Julho de 2021 – um texto resultante de uma leitura actual de uma obra do século XVI, mediada pelo texto do copista do Livro de São Vicente e pelos textos das transcrições (fixados segundo critérios do século XX) – terá ficado a dever tanto aos compositores de finais de Quinhentos, como aos músicos que a interpretaram. E nessa perspectiva, poderá simultaneamente ser encarada como música do passado e do presente.
Bibliografia
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Capella Patriarchal
Mariana Moldão, soprano
Maria de Fátima Nunes, alto
João Moreira, tenor
Hugo Oliveira, baixo
Cornetas & Sacabuxas de Lisboa
Tiago Simas Freire, Rodrigo Calveyra, cornetas
António Santos, Helder Rodrigues, sacabuxas
Sérgio Silva, órgão
João Vaz, órgão e direcção
N.B. – Escrito de acordo com as normas do Acordo Ortográfico de 1945, com as alterações do decreto-lei n.º 32/73, de 6 de Fevereiro.
[1] O programa completo do concerto é apresentado em apêndice no final deste texto.
[2] Pode-se salientar, neste âmbito, o trabalho de Manuel Joaquim (1953), Mariana Amélia Machado Santos (1958) e José Augusto Alegria (1973, 1977, 1989).
[3] A Fundação Calouste Gulbenkian iniciou em 1959 a série Portugaliae musica. Os primeiros volumes dedicados a polifonistas portugueses contemplaram obras de Estêvão Lopes Morago (Joaquim, 1961; Alegria, 1968) e de Frei Manuel Cardoso (Alegria, 1962). Note-se que são aqui referidas apenas as iniciativas levadas a cabo em Portugal. Não podem, no entanto, deixar de ser mencionadas as numerosas edições estrangeiras, que desempenharam um papel determinante na difusão internacional do património musical português, como a série «Cravistas portugueses», coordenada por Macário Santiago Kastner na editora Schott (na década de 1930), ou as dezenas de publicações da editora Mapa Mundi (fundada por Bruno Turner e Martin Imrie em 1977), com uma série especialmente dedicada à polifonia espanhola e portuguesa.
[4] Entretanto potenciada, em grande medida, através da criação do curso de Ciências Musicais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em 1980.
[5] «[...] os progressos substanciais que se realizaram nas últimas três décadas no domínio da investigação musicológica, graças aos quais dispomos, designadamente, de um extenso corpus de edições modernas de da nossa Música dos séculos XVI a XVIII, bem como de um volume considerável de novos dados biográficos sobre os nossos músicos passados e presentes».
[6] Referindo-se a esta questão, João Pedro d'Alvarenga sublinhara já a «[...] necessidade de a musicologia nacional «regressar, pragmaticamente, à "fase filológica" e concentrar-se na investigação séria e metódica de fontes primárias, na edição de repertório e na sua inter-relacionação», como condição para a verificação das hipóteses que permitiriam contextualizar globalmente a música em Portugal e obter dela um panorama mais plausível, «sem os enviezamentos provocados pela despreocupada reprodução de "factos" e generalizações mais ou menos absolutistas construídas na base de leituras quantas vezes acríticas de corpos documentais desconexos fornecidos pelo acaso ao conhecimento de investigadores e curiosos» (Alvarenga 2005, XI-XII).
[7] Estas edições, que sobrevivem apenas em autógrafo, foram pensadas para a execução em instrumentos modernos. Muitas contêm indicações de registação (por exemplo, para o órgão Tamburini (1938) da igreja de Nossa Senhora de Fátima em Lisboa), sugerindo constantes mudanças de teclados, crescendos de registação, utilização da caixa expressiva e outros recursos típicos da escola de órgão romântica.
[8] Considere-se, por exemplo, a inclusão de um dos Versos sobre os passos do cantochão da Ave maris stella de Coelho (com a referência «arr. de Rosa de Carvalho»), no concerto inaugural do órgão Tamburini da igreja de Nossa Senhora de Fátima pelo próprio Filipe Rosa de Carvalho, ocorrida a 12 de Outubro de 1928 (Inauguração do grande órgão da igreja de N.ª S.ª de Fátima, s.l., s.d., [III]), ou as interpretações corais, sob a direcção de Mário de Sampayo Ribeiro, de obras de Duarte Lobo, D. Pedro de Cristo e outros polifonistas portugueses, registadas fonograficamente em Polyphonia (1965).
[9] De salientar, neste âmbito, a criação em 1972, pelo alaudista e musicólogo Manuel Morais, do grupo Segréis de Lisboa, que ao longo de meio século de actividade teve uma acção decisiva na promoção do repertório português antigo, dentro e fora das fronteiras nacionais.
[10] Para além do óbvio interesse de um repertório exclusivamente português (ou lisboeta) num evento internacional com as características da MedRen, esta opção prendeu-se com a raison d'être da Capella Patriarchal, dedicada desde a sua formação à divulgação da música sacra de compositores activos em Lisboa entre os séculos XVI e XIX.
[11] Este manuscrito (infelizmente, parcialmente mutilado) está actualmente conservado no Arquivo da Sé Patriarcal de Lisboa sob a cota P-Lf FSVL 1P/H-6.
[12] O conteúdo do Livro de São Vicente foi integralmente transcrito por João Pedro d'Alvarenga (2005).
[13] P-Lf FSVL 1P/H-6, ff. 11v-13r, 21v-28r.
[14] A totalidade das obras instrumentais atribuídas a António Carreira «o Velho» conserva-se na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (P-Cug MM 242). Sobre a genealogia dos Carreiras, ver a hipótese avançada por Rui Vieira Nery (1992).
[15] Embora cada vez mais frequente actualmente, o uso do facsímile (que, desde logo, exige dos intérpretes o conhecimento do tipo de notação utilizado) apresenta algumas dificuldades práticas no contexto de uma execução em concerto (por exemplo, a disposição dos cantores e instrumentistas em torno de um facistol é muitas vezes impraticável num palco), pelo que o recurso a edições modernas é, de longe, mais comum.
[16] No caso de Laus, gloria et honor de Duarte Lobo, foi usada outra edição do mesmo autor.
[17] A Ave Regina Caelorum de Duarte Lobo faz parte dos Opuscula, publicados em Antuérpia, na Officina Plantiniana, em 1705. Desta edição original (pulicada em partes individuais), não sobreviveu o caderno correspondente ao Tenor II. A edição de José Abreu inclui uma proposta de reconstituição daquela parte em falta.
[18] A minha edição das duas obras instrumentais executadas no concerto de 7 de Julho de 2021 (a Fantasia em Ré e a Fantasia em Lá-Ré de António Carreira) tinha sido publicada anteriormente (Ferreira 2003, pp. 150-152). Uma selecção das obras contidas no manuscrito P-Cug MM 242 (muitas delas atribuídas a António Carreira) fora já editada na colecção Portugaliae musica (Kastner e Fernandes 1969). A atribuição de autoria, no caso das obras de Carreira, deve-se fundamentalmente ao trabalho de Kastner (1979, pp. 11-26, 153-169), embora algumas das atribuições tenham sido entretanto questionadas (Oliveira, 2013, pp. 7-18).
[19] Particularmente interessante, neste contexto, é o relato de uma viagem de D. Sebastião a Guadalupe, em 1576 (ver Morais 1992). Este relato é também referido por Alvarenga (2015).
[20] Citado por Manuel Morais (1992, pp. 374, 387).
[21] Citado por Alvarenga (2015, p. 11).
[22] O órgão actualmente existente na igreja de São Roque, em Lisboa, proveio do Convento de São Pedro de Alcântara e foi construído por António Xavier Machado e Cerveira, em 1784, sendo um dos primeiros da factura deste organeiro. Apesar de ter sido reparado em 1940, pela oficina de João Sampaio e Filhos, e de estar num estado praticamente íntegro, foi completamente reformulado em 1966 pelo organeiro alemão Werner Bosch. Nesta última intervenção, foi instalado um novo instrumento de dois teclados e pedaleira (mantendo a caixa antiga), tendo-se perdido toda a mecânica e tubaria interior originais (ver Azevedo, 1972, pp. 95-96). Apesar de algumas tentativas para justificar esta opção (ver Júnior, 1993), o instrumento perdeu todo o seu valor histórico.
[23] Embora datado da segunda década do século XX, este prefácio (republicado em 1951) reflecte uma visão «evolucionista» da música ocidental que perdurou até décadas mais tarde. Um raciocínio semelhante está subjacente à argumentação em favor da intervenção praticada em 1966, no órgão da igreja de São Roque em Lisboa, que obliterou a quase totalidade do material original (ver nota 23): «[...] quase se poderia afirmar que a juventude pujante do órgão da Igreja de S. Roque, quando saído das mãos de António Xavier Machado Cerveira, evoluiu para uma maior suavidade [...]. Tal como um adulto que, embora conservando a identidade com o que foi em criança, já tem muito pouco a ver com a sua meninice, assim o órgão da Igreja de S. Roque, embora diferente da traça primitiva, não deixa de ser um instrumento valioso [...]» (Júnior 1993, p. XXV).
[24] De uma fase inicial, onde o repertório associado ao movimento da «Música Antiga» era balizado pela data de 1750 (ou, mais concretamente, pela obra de Bach e Haendel), assiste-se, no final do século XX, à abordagem de compositores cada vez menos longínquos temporalmente, como Haydn, Mozart, Beethoven, Mendelssohn, Berlioz, Brahms ou Fauré.
[25] Itálicos do original.
[26] Não só quatro de entre os sete entrevistados são nomes inquestionavelmente conotados com a «música antiga», como uma listagem da discografia da Matthäus-Passion de Bach incluída no artigo (quarenta e duas gravações realizadas entre 1935 e 1990) revela uma preferência crescente pelos instrumentos antigos e pelos intérpretes associados à interpretação histórica.
[27] O autor do artigo distinguia já (em 1990) várias categorias de intérpretes, de acordo com as suas opções: «[...] plusieurs visions se côtoient aujourd'hui dans nôtre discographie [de Bach] : les témoignages des grandes visions post-romantiques (Weisbach, Mengelberg...), les symphonistes contemporains (Karajan, Solti...), les partisans d'une authenticité « modernisée » (Schreier, Corboz...) et les « baroqueux ».» (Alexandre, 1990, p. 48).
[28] Richard Taruskin, talvez o mais notório crítico da interpretação historicamente informada, publicou diversos artigos sobre o assunto, desde 1972. Estes escritos, reunidos neste livro em 1995, revelam a evolução da posição do autor, de perturbador interno do movimento (Taruskin dirigia um ensemble vocal, o Cappella Nova) a observador exterior.
[29] Este facto é apontado em relação aos escritos de Taruskin: «[...] part of the problem is that his [Taruskin's] praise for the movement and his recommendations for its directions are far less strongly argued, most often couched in ambivalent terms and consequenly less easy to summarize than his pointed criticisms.» (Butt, 1996, p. 325). O próprio Taruskin (1995, p. 9) já tinha antecipadamente recohecido o problema: «[...] only half the battle is won. The false authenticity has been exposed, but the true authenticity — a necessary pleonasm, alas — remains hidden».
João Vaz
Escola Superior de Música de Lisboa
Professor Coordenador
Born in Lisbon, João Vaz studied organ under Antoine Sibertin-Blanc in Lisbon and José Luis González Uriol in Zaragoza. He also worked with Edouard Souberbielle and Joaquim Simões da Hora, acquiring a strong interest in Early Music. He holds a doctorate in Music and Musicology, with a dissertation on the decline of Portuguese classical organ tradition in the mid-1800’s. Having developed a worldwide career, he is often invited to play in prestigious organ festivals, as well as to teach in performance courses and to act as a jury member in international organ competitions. In 2016 he founded Capella Patriarchal, a group especially devoted to the performance of Portuguese sacred music. His interest in Portuguese organ music is reflected in his several CD recordings (most of them performed on Portuguese historic organs) and in his musicological work (articles and musical editions). João Vaz holds the position of organ teacher at the Escola Superior de Música de Lisboa and at the University of Évora. He is also artistic director of the Madeira Organ Festival and of the concert series featuring the six organs of the Basilica of the National Palace of Mafra (for the restoration of which he was a permanent consultant) and of the historic organ of the Church of São Vicente de Fora in Lisbon, of which he became titular organist in 1997.