“(...) I don’t think you can speak about music.
You can only speak about a subjective reaction to it”.
(Barenboim & Said, 2004, p.123)
As obras interpretadas neste registo em vídeo foram escolhidas para esta formação de câmara – violino, violoncelo e piano – em função dos títulos inscritos pelos respetivos compositores. No processo de trabalho em grupo, a especulação sobre as inscrições textuais foi o mote para a exploração deste programa, como se de um guia interpretativo se tratasse. Nesta medida, e ao longo de vários meses de trabalho, a orientação desta formação de câmara passou por várias etapas de estudo onde a leitura, análise e diversas apresentações públicas foram moldando o discurso musical e suscitando um intenso debate na procura de uma “narrativa” comum para a sua comunicação em performance (recital). Uma das etapas mais difíceis para os alunos (com diferentes idades e passado musical, cultural e social), foi a incorporação em simultâneo do carácter de cada peça e experiência dos ambientes propostos por cada uma delas no mesmo grau de entendimento e perceção individual. Creio que o longo tempo de maturação em torno das peças veio esbater esta questão, mas o desafio foi constante num processo que, aliás, é eloquentemente descrito pelo pianista e pedagogo Miguel Henriques:
Importa sublinhar que, no contexto de obras instrumentais de música de câmara – e, obviamente, noutras obras instrumentais – a ausência de um texto e/ou inscrição textual coloca ao intérprete uma maior complexidade na leitura da obra e, consequentemente, na perceção do resultado acústico e estético. Por outro lado, existem obras que contêm um “programa” que, implícito ou explícito, podem ser fulcrais para a indagação de um argumento interpretativo: a título de exemplo, a Balada op. 10, nº 1 para piano, de Johannes Brahms inclui o poema escocês “Edward” [1].
Trio op. 22 | Władysław Żeleński (1837-1921)
Mortuos plango (Andante sostenuto)
O compositor polaco Władysław Żeleński [2] dedicou grande parte da sua vida à composição de obras para formações de câmara. O trio em Mi maior para violino, violoncelo e piano, op. 22 foi composto em 1874 e compreende a inscrição de um título em latim, típico à época nos sinos de igreja. Este título prefixa o longo poema de Friedrich Schiller – publicado em 1799 e intitulado “Das Lied von der Glocke” [3] – em cada um dos três andamentos, respetivamente: "Vivos voco!", "Mortuos plango!", "Fulgura frango!" [4]
Como um dos pontos de partida, a sugestão da inscrição do segundo andamento foi abordada em cada momento de orientação do grupo: a questão primordial seria a de identificar os elementos estruturais que pudessem direcionar o ouvinte para o respetivo ambiente.
Na leitura deste andamento, a indicação metronómica ("Andante sostenuto", colcheia = 66) e as indicações con gran espressione e espressivo molto, respetivamente no eixo do tema do piano (figura 1) e no eixo do tema do violoncelo (figura 2), remetem de imediato para uma escolha do tempo bastante lento e com ampla profundidade expressiva.
Figura 1. [compassos 1 a 5]
Figura 2. [compassos 12 a 16]
A dinâmica de piano e as indicações cantabile e sonore (respetivamente no início dos temas de violoncelo e violino) reforçam a ideia de um som denso e intenso. De sublinhar que o tema acima mencionado é secundado por uma voz interior insistentemente cromática e de registo grave realizado pelo piano (mão esquerda, figura 1). Neste âmbito, um outro detalhe rítmico de relevo – que acompanha as cordas na melodia principal em oitava e sempre portando – é a tercina em semicolcheias que infunde o tema num passo sereno e pesaroso (figura 3).
Figura 3. [compassos 9 a 12]
Não obstante a tonalidade de Dó maior (até à cadência do compasso 32), o lastro melódico, intervalar e rítmico da melodia principal que “identifica” o andamento é notoriamente triste e funesto. Esta carga expressiva é amplificada na secção seguinte (iniciada no compasso 33) pela amplitude intervalar da sétima maior, presente no novo tema projetado pelo piano – na tonalidade de Dó menor – e pela sétima menor na continuidade do referido tema apresentado pelo violino (figura 4).
Figura 4. [compassos 34 a 36]
Com o intuito de sublinhar a relação intervalar supramencionada, o contraponto do violoncelo em semicolcheias pontua a tensão intervalar agora em segundas menores (intervalo invertido da sétima) com o piano e com o violino (figuras 5 e 6).
Figura 5. [compassos 41 a 43]
Figura 6. [compassos 44 a 46]
Em rigor, o curto desenvolvimento desta secção entre os compassos 49 e 55, evidencia a importância destes intervalos (introduzindo aqui o intervalo de quinta diminuta mormente no início do tema do piano e do violoncelo) em toda a textura que Żeleński preconiza no diálogo entre os três instrumentos (figuras 7 e 8).
Figura 7. [compassos 49 a 51]
Figura 8. [compassos 52 a 54]
A conclusão desta secção expande o carácter lamentoso deste tema com três elementos essenciais: o registo amplamente agudo das cordas, o crescendo contínuo da dinâmica e o ritmo “instável” sincopado no piano – oitavas entre as duas mãos no registo médio e grave – com um stringendo até à cadência que conduz o gesto melódico para a secção seguinte em Dó maior (figura 9).
Figura 9. [compassos 62 a 70]
De seguida, o compositor polaco cria o principal ponto culminante do andamento, com uma técnica semelhante à anteriormente referida ao voltar ao tema incial: crescendo sempre até forte, melodia em oitava entre as cordas, com a presença do cromatismo no piano e contrapondo o ritmo tercina/duas semicolcheias no último crescendo (indicação de con gran forza) com o propósito de construir um amplo ponto de tensão ao nível acústico e harmónico que encerra num acorde de sétima, sustentado pelo tenuto numa fermata (figura 10).
Figura 10. [compassos 91 a 104]
A secção conclusiva do andamento apresenta a melodia da segunda secção em pianíssimo – novamente em Dó maior – com inflexões ao quarto grau menor, gradativamente de um registo médio no piano para um registo grave no violoncelo, com a indicação de morendo sempre até ao ppp. O ambiente melancólico é inteligível e salienta o carácter soturno com que Żeleński pretendeu encerrar o discurso musical neste andamento (figura 11).
Figura 11. [compassos 115 a 127]
Duas peças em trio para violino, violoncelo e piano | Lili Boulanger (1893-1918)
Marie-Juliette Olga Lili Boulanger foi a primeira mulher a conquistar o prémio de composição “Prix de Rome” em 1913. Apesar da morte prematura aos 24 anos devido a problemas originados por uma doença crónica precoce, a compositora francesa deixa uma obra ainda significativa para orquestra e coro, nomeadamente.
No âmbito da música de câmara, as duas peças em trio foram compostas por Lili Boulanger em 1917-18 (assim intituladas respetivamente na Edição Durand, 2007 | Paris, França – D. & F. 15697 e 15698) e estreadas na Société Nationale de Musique a 8 de fevereiro de 1919, sensivelmente onze meses após a sua morte [5].
De mencionar que existem algumas versões assinadas pela própria compositora para duo e orquestra [6]. Os dois andamentos registados neste vídeo são interpretados em conjunto, mas podem sê-lo de forma independente, como se depreende aliás pelo diferente número de registo da editora. Denota-se, porém, a similitude do principal gesto melódico que inicia cada uma das peças – respetivamente violoncelo e violino – o que pode pressupor uma certa ideia unificadora entre as mesmas por parte da compositora (figura 12).
Figura 12. [D’un soir triste | compassos 1 a 6]
D’un soir triste
É sabido que Lili Boulanger se encontrava num estado de saúde debilitado e que este foi-se progressivamente deteriorando nos finais de 1917 e primeiros meses do ano seguinte – falecendo a 15 de Março de 1918. Não será, portanto, inapropriado relacionar a sua condição humana ao ambiente discursivo desta peça.
Neste sentido, é apropriado salientar os vários aspetos estruturais da sua escrita que sinalizam a intenção em comunicar um caráter que se possa coadunar com o título proposto.
Em primeiro lugar, a indicação de Lent, grave (ver figura 12) que assinala o cariz sério do “passo” lento dos acordes do piano e da longa linha austera apresentada e construída violoncelo durante vinte e nove compassos. Este motivo é também apresentado pelo piano, em diálogo durante sensivelmente oito compassos (figura 13). Desta forma, gera-se uma maior densidade no discurso musical e substancia-se o poco crescendo que amplia progressivamente do mezzo forte para o forte.
Figura 13. [compassos 15 a 18]
Por último, o violino apresenta este motivo melódico sob a indicação de très sobre [7] – sustentado pelos valores longos do violoncelo (figura 14) – e desenvolve-o para um gesto mais amplo ao nível da dinâmica e da amplitude sonora (figura 15).
Figura 14. [compassos 30 a 33]
Figura 15. [compassos 38 a 40]
Numa secção posterior, Boulanger acentua o carácter lancinante deste longo momento inicial da peça com uma linha melódica ascendente iniciada pelo violino e continuada pelo violoncelo (respetivamente, figura 16 e figura 17). Saliente-se as indicações de dolent, douloureusement e douloureux [8] , que enfatizam a pungência do discurso musical.
Figura 16. [compassos 54 a 56]
Figura 17. [compassos 58 a 60]
Na secção central, é de relevar a indicação de comme une plainte [9], no contexto de uma indicação de andamento Plus lent, funèbre. Evidencie-se a acentuação no ritmo sincopado lançado pelo violino em resposta ao Dó grave e pesado do piano no compasso 95 (figura 18), gesto último esse que gravita em torno do gesto melódico do violoncelo (figura 19).
Figura 18. [compassos 95 a 97]
Figura 19. [compassos 102 a 104]
O quadro emocional que é patente nesta secção, é de novo reforçado pela recapitulação do tema principal: num registo mais grave apresentado pelas cordas, a indicação éteint, las [10] pretende veicular um “estado de espírito” exaurido. Aliás, em termos literários o termo las é frequentemente usado para adjetivar a fadiga psíquica e a extenuação emocional (figura 20).
Figura 20. [compassos 148 e 149]
Em segundo lugar, e no que concerne a dinâmica, a construção temática conduzida por ambos os instrumentos de cordas – e pontualmente pelo piano – é direcionada para pontos culminantes em forte ou fortíssimo. Estes pontos culminantes incorporam momentos de extrema tensão quer pela relação intervalar de segundas menores e maiores (e inversão deste intervalo por via do registo) observadas verticalmente entre os três instrumentos, quer pela relação intervalar melódica em cada instrumento (figura 21).
Figura 21. [compassos 61 a 63]
Na secção posterior que antecede (e prepara) a chegada a Plus lent, funèbre, Boulanger amplifica a tensão criada pelas relações intervalares acima referidas com um inquietante e frenético contraponto rítmico: sob o contraponto melódico imitativo entre o violoncelo e a oitava aguda do piano, é notório o gesto rítmico sincopado no violino em contraponto com a tercina da voz intermédia projetada pela mão direita do piano (figura 22). O resultado ritmicamente instável, acusticamente intenso e melodicamente tenso que é delineado nesta passagem, pretende transmitir um quadro emocional agoniante e desesperado.
Figura 22. [compassos 87 a 89]
Por fim, na secção que recapitula o tema principal (referenciada na figura 20), a compositora francesa apresenta o ponto máximo enfatizando o motivo melódico com acentos num registo agudo no violoncelo e em oitava no violino; por seu turno, o piano projeta o extremo grave do registo (também em oitava) com particularidade de preservar o ritmo em tercina – no terceiro tempo – mormente usado na secção Plus lent, funèbre, já descrita na figura 18 (figura 23).
Figura 23. [compassos 175 a 182]
Um outro aspeto estrutural a realçar na partitura é o da harmonia. Neste domínio, Lili Boulanger justapõe os intervalos de segundas menores e maiores presentes nos gestos melódicos (e respetivas inversões em função do registo de cada instrumento). Desta forma, cria uma tensão latente nos acordes e em cada gesto vertical notoriamente audível na textura do piano e no contraponto com as cordas. Embora os excertos anteriormente apresentados sejam disto um exemplo, expõe-se de seguida outras três passagens com mais detalhe (figuras 24, 25 e 26).
Figura 24. [compassos 24 e 25]
Figura 25. [compassos 49 a 51]
Figura 26. [compassos 192 e 193]
É precisamente na justaposição e condução de todos os elementos estruturais aqui descritos que Lili Boulanger pretende transmitir um ambiente sombrio, pesaroso e frágil. Creio que a sugestão textual da noite triste é indissociável da mulher que vivia numa situação débil e humanamente efémera [11].
Que outras leituras poderão ser feitas conhecendo as circunstâncias em que vivia a compositora? Na sua escrita, os sinais que deixou podem ser argumentados de outra forma? Que espaço têm esses sinais estruturais para uma outra interpretação? [12]
D’un matin de printemps
Conforme referido anteriormente, a peça D’un matin de printemps incorpora o principal elemento melódico que consubstancia a peça D’un soir triste. Não obstante esse elemento unificador, o ambiente desta “manhã de primavera” é o oposto da primeira peça sendo, desde logo acentuado pela indicação metronómica (semínima = 144) do Assez animé (figura 27).
Neste sentido, as indicações de très rythmé, léger na parte de piano (juntamente com o pianissimo) e gai, léger na parte de violino com uma indicação de dinâmica em piano (exatamente a mesma indicação na parte de violoncelo no compasso 22), fazem adivinhar um carácter muito diferente da peça anterior.
Figura 27. [compassos 1 a 8]
Em rigor, Lili Boulanger assinala mais duas passagens na parte de violino – gracieux | ardent, heureux – que dão uma pista inequívoca sobre o quadro emocional que tenciona veicular (figuras 28 e 29).
Figura 28. [compassos 14 a 16]
Figura 29. [compassos 68 a 70]
O violoncelo responde com um gesto semelhante nos compassos 26 e 72, respetivamente nas figuras 30 e 31.
Figura 30. [compassos 25 a 27]
Figura 31. [compassos 72 a 74]
Nestes quatro últimos exemplos, a textura do piano evidencia uma articulação em staccato e portato, bem como o ritmo em colcheias, nomeadamente, que contribuem para sublinhar um ambiente marcadamente leve, gracioso e mais brilhante.
Um outro excerto (figura 32) demonstra bem a importância desta textura (agora em fortissimo) que apoia o diálogo frenético entre as cordas.
Figura 32. [compassos 174 a 177]
Esta é uma passagem quase replicada noutra dinâmica que prepara a vertiginosa coda final que se pode bem caracterizar por empolgante e arrebatadora (figura 33).
Figura 33. [compassos 194 a 197]
Os contrastes estão bem identificados por Boulanger e os estados de espírito bem marcados pela interpretação do trio, quer pela subtileza do som lírico e expansivo, quer pela vivacidade da articulação do tema mais rítmico e pelo timbre mais vincado num discurso vibrante e excitante.
Para terminar, deixo uma palavra de agradecimento aos elementos do trio, não apenas pela tenacidade no estudo e pelo empenho em cada momento do processo de aprendizagem, mas sobretudo pela vontade de, concomitantemente, pensar e debater a música em grupo. Sem detrimento de abordar a partitura com rigor e respeito pelo texto musical, verificou-se determinação em aprofundar a compreensão das obras, que ultrapassou uma mera leitura de notas, dinâmicas ou articulações avulsas. Esta postura, aliada a um notável envolvimento físico e mental resultou numa interpretação coerente, una, sincera e extremamente convincente. Este deve ser, em última análise, o papel do intérprete quando pisa o palco como bem define o musicólogo Richard Taruskin:
“It seems a curious request to make of a performer, to ‘let the music speak for itself’. If a performer did not have the urge to participate in the music and, yes, to contribute to it, why then he wouldn’t have become a performer in the first place” (Taruskin, 1995:52).
[1] Consultar a seguintes fontes bibliográficas:
Gran, Jacob Joel, "Tonal and topical coherence in Brahms's op.10 ballades" (2014) 47-59. LSU Master's Theses. 1385. https://digitalcommons.lsu.edu/gradschool_theses/1385
Hastings, Charise Y. “The Performer’s Role: Storytelling in Ballades of Chopin and Brahms.” PhD diss., University of Michigan, 2006. ↵
[2] Exerceu funções como pedagogo, maestro e pianista para além de ter recebido um Ph.D em Filosofia pela Universidade de Praga em 1862. ↵
[3] Tradução livre do autor: A Canção do Sino ↵
[4] Tradução livre do autor: Chamar os vivos! Chorar os mortos! Quebrar os relâmpagos! ↵
[5] Peças interpretadas pela sua irmã Nadia Boulanger ao piano, Maurice Hayot (violino) e André Hekking (violoncelo). ↵
[6] D’un matin de printemps: para piano e violino ou flauta (publicado pelas Edições Durand em 1922);
D’un soir triste: duo para violoncelo e piano (não publicado);
As versões orquestrais de ambas as peças foram adicionadas ao catálogo das Edições Durand em 1993 aquando das celebrações do centenário da compositora. ↵
[7] Tradução livre do autor: “muito sóbrio”. ↵
[8] Tradução livre do autor: “dolente”, “dolorosamente”, “doloroso”. ↵
[9] Tradução livre do autor: “como uma queixa” ↵
[10] Tradução livre do autor: “apagado/extinto, cansado” ↵
[11] A este respeito, o filósofo britânico Malcolm Budd (1992, p.109) refere-se a algumas teses que defendem a música como um “símbolo da emoção da vida” e não como um veículo dos sentimentos do próprio compositor. ↵
[12] O capítulo de J. Peter Burkholder no livro Approaches to meaning in music (2006), propõe uma leitura mais aprofundada sobre um modelo relevante para, eventualmente, responder a essas questões. ↵
Bibliografia
Almén, B., & Pearsall, E. (2006). Approaches to meaning in music. A simple model for associative musical meaning (pp. 76-106). Indiana University Press.
Barenboim, Daniel, e Edward W. Said (2004). Parallels and Paradoxes: Explorations in Music and Society. London: Bloomsbury Publishing.
Budd, Malcolm (1992). Music and the Emotions: The Philosophical Theories. London and New York: Routledge.
Kramer, Lawrence (2010). Interpreting music. University of California Press.
Henriques, Miguel G. (2014). The (Well) Informed Piano: Artistry and Knowledge. Lanham: University Press of America.
Taruskin, Richard (1995). Text and Act: Essays on Music and Performance. Oxford: Oxford University Press.