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A voz instrumental: Perspectiva dos cantores de jazz sobre a interpretação e improvisação

  • Intérprete: Sónia Oliveira
  • Instrumento / Área: Voz
  • Orientador: Professor Doutor Ricardo Pinheiro
  • Instituição: Escola Superior de Música de Lisboa
  • Programa:

    Merge (Jorge Ramos)
    Música das Nuvens e do Chão (Hermeto Pascoal)
    Maracatu (Yuri Daniel)
    Lights (Sónia Oliveira)
    Aceitação (Sónia Oliveira);
    Lamento (Sónia Oliveira/Carlos Garcia)

  • Link: http://hdl.handle.net/10400.21/9367

 
Merge | Sónia Oliveira | Jorge Ramos (comp)
 
Música das Nuvens e do Chão (Hermeto Pascoal)
 
Maracatu (Yuri Daniel)
 
Lights (Sónia Oliveira)
 
Lamento (Sónia Oliveira)
 
Aceitação (Sónia Oliveira)

 

A voz instrumental constitui-se enquanto ferramenta de interpretação e improvisação musical utilizada por cantores desde os primórdios do jazz. Tendo-se modificado esteticamente ao longo dos séculos XX e XXI, é uma abordagem que envolve uma considerável liberdade criativa e que se verifica tanto no contexto mais hermético da música escrita, como no seio da música improvisada.

Uma vez que a voz parece estar a assumir um papel cada vez mais relevante no contexto da música instrumental e improvisada, impõe-se a necessidade de compreender as dimensões que esta poderá adoptar, assim como indagar de que forma o cantor de jazz poderá explorar o carácter instrumental da interpretação vocal.

Através desta investigação, proponho contribuir com uma análise sobre questões sobejamente debatidas de forma subjectiva pelos músicos de jazz, mas pouco examinadas objectivamente. Irei, assim, debruçar-me sobre o fenómeno da utilização da voz enquanto instrumento - sem recurso a texto (música sem letra, interpretação de melodias apenas) - no contexto do jazz, tanto na música improvisada como escrita. Apesar de esta ser uma abordagem muito utilizada na prática performativa, a área de estudo proposta conta ainda com poucos trabalhos sistemáticos que explorem toda a sua abrangência.

Nesta área de estudos torna-se fundamental, por exemplo, aprofundar questões como o desenvolvimento dos processos específicos de comunicação de ideias musicais e interpretação de música sem letra, e o estudo de forma como pensam e agem os intérpretes da voz no momento de improvisar, aliando a intuição aos conhecimentos teórico e técnico.

Será fundamental compreender quais os critérios adoptados no meio no jazz no âmbito da atribuição de “credibilidade” à interpretação de uma melodia sem letra, e porque razão esta abordagem é por vezes criticada num universo onde o processo de validação opõe “cantor” e “músico”, conforme referido por Sella (2015). Procurar-se-á também estudar os aspectos comunicacionais envolvidos na interpretação vocal sem letra, no sentido de discernir se e como são transmitidas ideias e emoções ao ouvinte, ainda que sem o recurso à palavra.

No contexto da performance de jazz vocal sem letra, podemos então identificar os seguintes objectivos para este trabalho:

  • Compreender concretamente de que ferramentas dispõem os cantores para utilizar a voz no plano instrumental, tanto em termos de técnica, estética, emoção, teoria e prática (recursos performativos);
  • Identificar possíveis diferenças de abordagem nos contextos da música escrita e improvisada;
  • Compreender de que modo se poderá comunicar neste contexto performativo, discernindo se e como são transmitidas com maior ou menor subjectividade ideias e emoções ao ouvinte, sem o recurso à palavra;
  • Compreender quais os critérios que estão subjacentes à atribuição de “credibilidade” à performance de uma melodia sem letra;
  • Compor e interpretar música original que traduza as ideias e conceitos estudados (patente no vídeo que acompanha este texto);
  • Interpretar música já existente que, para além de traduzir estes conceitos, tenha de algum modo servido de estímulo para a realização deste estudo.

Dado existir, no meio do jazz, um número considerável de cantores a utilizar a abordagem vocal-instrumental, começa a ser possível estudar-se de forma sistemática o seu enquadramento. Será esta música apenas produto de um segmento de mercado restrito, ou poderá estabelecer-se uma ligação entre música vocal sem letra e o público mais alargado?

Verifica-se a existência de um acréscimo da aceitação da abordagem “instrumento-voz” enquanto opção estética, apesar do seu impacto ser ainda relativamente limitado junto do chamado “grande público”. Apesar das inúmeras comparações feitas pela crítica entre o “instrumento-voz” e outros instrumentos, como por exemplo aquelas proferidas em relação a Gretchen Parlato “Gretchen Parlato's voice is a cello. It's a muted trumpet, a trombone. It's an alto saxophone” (GREENLEE, 2009) ou a Esperanza Spalding “the delicate sound of Spalding's voice that almost reflects that of a violin” (BERLANGA-RYAN, 2011), põe-se a questão sobre o porquê de alguns cantores tentarem assemelhar-se a determinados instrumentos de sopro, ou outros (GOTO, 2014).

Será o processo de construção desta abordagem musical, estética e performativa uma mera tentativa de emulação de instrumentos como o trompete, o saxofone ou mesmo o violino? Ou estarão estes cantores em busca do seu próprio som instrumental? E de que modo esse som instrumental se diferencia do som emitido pela voz quando existe letra? E como se fundem esses dois tipos de som em peças que contêm melodias com e sem letra, alternadamente?

O texto de uma peça musical constitui-se soberano enquanto indicador comunicacional do sentido literário que o compositor lhe quer atribuir. Tal como a oralidade é a forma mais natural de se transmitir uma ideia, a letra de uma peça musical facilita a transmissão de conceitos, emoções, histórias e/ou sentidos poéticos.

Ainda assim, um vasto grupo de cantores tem vindo a demonstrar que a carga emocional de uma peça pode ser transmitida sem se recorrer à utilização de palavras. Conceitos como “quente”, “suave”, “ágil”, “terna”, “simples” e “brilhante” são comummente associados às melodias cantadas, de modo a caracterizá-las e a descrever o que elas transmitem (SELLA, 2015).

Ao longo do meu percurso académico e performativo concluí que o canto, enquanto expressão da voz, é uma área consideravelmente específica na música, não por ser necessariamente diferente em termos dos resultados musicais que produz, mas por ser o único “instrumento” que não implica a existência de uma extensão do corpo humano. Desta forma, o cantor utiliza o seu corpo enquanto instrumento e, por isso, lida com ele todos os dias não só em contextos artísticos, como também quotidianos. O cantor é o único músico que passa pela experiência de apenas ele próprio poder usar o seu “instrumento”, já que este é o seu próprio corpo (SÁ, 1997).

A importância da voz na sociedade moderna não pode ser subestimada: este é o primeiro instrumento que está ao alcance de todas as pessoas, e que serve para projectar a sua personalidade e influenciar quem as rodeia (STOLOFF, 2006).

A voz humana consegue transmitir tanto ideias complexas como emoções subtis. Esta característica é evidente no discurso falado, mas pode também manifestar-se em termos de comunicação não-verbal. Através da expressão vocal, é possível compreender o estado de espírito de uma pessoa (podendo-se inferir, por exemplo se esta está triste ou contente). Desse modo, a cantar, também as emoções se transmitem de forma mais ou menos fluida (APPELMAN, 1986).

Cantar é uma experiência sensorial. De acordo com Appleman (1986) o cantor não consegue cantar uma nota sem primeiro a conceber enquanto sensação. São essas sensações que se ligam de forma inexorável às questões da interpretação. O objectivo final do canto é a comunicação de ideias, emoções e situações, sendo que, de acordo com Sá (1997) interpretar é comunicar. Levinson (2013) postula que o cantor tem ao seu critério a comunicação de mensagens, podendo decidir que tipo de informação deve comunicar e de que modo o fazer. É esse o seu processo primeiro de interpretação (LEVINSON, 2013).

O Jazz vocal pressupõe um conjunto de liberdades interpretativas que lhe permitem evidenciar a melodia, juntamente com o texto e o seu significado, bem como fazer uso de recursos que habitualmente pertencem aos instrumentistas, como por exemplo a exploração do som musical em si mesmo (abdicando do recurso da letra) e o afastamento da melodia original (LEVINSON, 2013).

Todos os elementos disponíveis (instinto, conhecimento musical, técnica vocal, articulação de vogais com consoantes, sílabas percussivas) são consideradas ferramentas que o cantor tem à sua disposição para utilizar a voz na perspectiva instrumental (SELLA, 2015). Segundo Sella (2015), seja a cantar uma melodia escrita ou a improvisar, alguns cantores de jazz da contemporaneidade são cada vez mais definidos como instrumentos em si mesmos.

Torna-se fundamental questionar de que forma se processa a avaliação e validação das interpretações “instrumentais” realizadas por cantores. Sella (2015), defende que tanto da parte dos críticos como, e especialmente, da parte dos músicos, parece haver alguma resistência relativamente à aceitação da voz enquanto “instrumento” com capacidade musical criativa, especialmente em situações de improvisação. Referindo-se ao caso da cantora e contrabaixista Esperanza Spalding, Sella verifica que o facto de esta tocar contrabaixo é visto como atributo revelador de conhecimento, criatividade e inovação, enquanto que o facto de cantar é conotado apenas com uma potencial intuição, tradição e teatralidade. Este tipo de atribuição sugere que Spalding utiliza na voz competências musicais diferentes daquelas que emprega no instrumento (SELLA, 2015).


Estratégia de Investigação

Este estudo insere-se no paradigma da fenomenologia, uma vez que foi utilizada uma amostra pequena, os dados gerados são qualitativos, subjectivos, mas plenos de significado, e existe o objectivo de gerar uma teoria decorrente do estudo. Pretende-se compreender como é, na actualidade, utilizada a voz enquanto instrumento, não descurando, contudo, o percurso histórico deste tipo abordagem.

A fenomenologia é uma perspectiva que provém dos filósofos existencialistas alemães, franceses e holandeses da segunda metade do século XIX e do século XX. Visa descobrir como o mundo é constituído e como o ser humano o experiencia através de actos conscientes (FORTIN, 1996). O que a diferencia relativamente a outras abordagens qualitativas, é o facto de esta procurar descobrir a essência dos fenómenos, a sua natureza intrínseca e o sentido que os humanos lhe atribuem. Um estudo fenomenológico é aquele que se propõe estabelecer numa base liberta de estereótipos para todas as ciências. (GIL, 1999). Deste modo, este estudo parte de princípios tidos como verdadeiros, possibilitando chegar a conclusões em virtude da sua lógica. É tendencialmente um estudo descritivo, mas irá englobar também características de estudo exploratório.

Com a ajuda da realização e análise de entrevistas não estruturadas será possível extrair conclusões sobre a experiência dos participantes, de modo a relacionar os seus comportamentos com as ideias provenientes da literatura (FORTIN, 1996). De acordo com Fortin (1996), as entrevistas não estruturadas, pela sua natureza e dados produzidos, adequam-se às abordagens qualitativas, nomeadamente à perspectiva fenomenológica.

Os dados foram recolhidos em várias fases. Primeiramente (e de forma paralela com a revisão bibliográfica) foi realizada uma análise histórica, com base no recurso à literatura e discografia envolvidos no processo de transformação do papel da voz enquanto instrumento.
Após compreendido o percurso histórico da voz enquanto instrumento, importa saber como é abordado esse processo nos dias de hoje.

Foi realizada uma análise do trabalho desenvolvido por alguns cantores contemporâneos que usam a voz enquanto recurso instrumental e que, numa perspectiva de improvisação, têm inovado tanto em termos técnicos (qualidade do som) como interpretativos. Quando possível, para além da análise performativa[1] (feita pela observação de concertos ao vivo ou de vídeos), e conforme referido anteriormente, foram feitas entrevistas não estruturadas a cantoras de jazz que têm vindo a desenvolver a abordagem da voz como instrumento, de modo a compreender “por dentro” a sua perspectiva em relação ao instrumento.


Enquadramento Histórico

No início da década de 1920, o jazz vocal caracterizava-se pela utilização de frases melódicas dotadas de uma certa liberdade rítmica. Determinada frase podia ter início no tempo, outras vezes no contratempo, e em diferentes momentos do compasso, em oposição ao tipo de performance cantada “sempre a tempo” típica dos contextos não “jazzísticos” (MARTIN, 2005). Mais tarde, a partir da influência do blues, foram definidas algumas características baseadas em registos, tais como a performance de Bessie Smith em “Back Water Blues” (1927). Nesta peça, verifica-se uma construção frásica relativamente livre, uma colocação sincopada de notas e letra, notas offbeat, uso de slides, e outros ornamentos vocais (MARTIN, 2005). No entanto, o cantor via o seu papel limitado à interpretação de melodias com letra, o que reduzia as possibilidade em termos de improvisação. Apesar disso, com a popularização do blues nos anos 20, e do swing nos anos 30, o repertório cantado ganhou relevância na indústria do entretenimento, facto que manteve os cantores no centro das atenções (ibid., 2005).

O som instrumental-vocal (também mencionado na literatura como instru-vocal) foi celebrizado por vários grupos que utilizaram a voz para criar harmonias, recriando discretamente, através dos arranjos, o som de um grupo de instrumentos de sopro. Começava também a haver espaço para pequenas variações improvisadas das linhas melódicas. São disso exemplo abordagens das Boswell Sisters (grupo activo entre 1925 e 1936) e das Andrews Sisters (com carreira activa entre 1937 e 1967) (STOLOFF, 1996). Estes grupos vocais femininos interpretavam arranjos que incorporavam melodias vocais sem letra, recorrendo a harmonias fechadas que mais faziam lembrar um ensemble de metais, tanto em termos do som, como também da configuração rítmica, assemelhando-se aos arranjos típicos de big band (GRIDLEY, 2003).

O estilo scat singing consiste na vocalização de sons e sílabas que, sendo musicais, não têm tradução literal e, consequentemente, não possuem qualquer significado (STOLOFF, 1996).
Tem sido utilizado a partir de diversas abordagens silábicas que podem assemelhar-se a diversos dialectos, apesar de o significado se manter nulo (GRIDLEY, 2003). A escolha das sílabas poderá ser relativamente aleatória, salvo algumas excepções. Por exemplo, a escolha de determinado conjunto de sílabas poderá ajudar a criar frases com características especificas, que irão configurar um determinado tipo de articulação (GRIDLEY, 2003). De acordo com Stoloff (1996), apesar de o scat ter a mesma idade do jazz, acabou por se definir essencialmente como um idioma do bebop.

O principal impulsionador do scat singing foi Louis Armstrong (1901-1971) (STOLOFF, 1996). Há quem afirme que o primeiro registo de scat acontece quase por acidente quando, durante a sessão de gravação do tema “Heebie Jeebies”, o papel onde estava escrita a letra da canção cai inesperadamente e, pelo facto de não conseguir ver a letra, Armstrong opta rapidamente por, em vez de parar a gravação, continuar a cantar a melodia como se a estivesse a tocar no trompete. Apesar da discutível veracidade deste episódio, é possível ouvir ainda hoje a gravação dessa sessão (editada em 1926, pela OKeh). De acordo com Stoloff, Armstrong foi certamente o primeiro a gravar scat, e merece reconhecimento por tê-lo transformado numa forma de arte (STOLOFF, 1996).

A solução funcionou tão bem que acabou por tornar-se numa das imagens de marca do cantor e trompetista, que começou a desenvolver uma linguagem própria na qual combinava a letra dos temas com linhas improvisadas ao estilo do trompete, elevando assim a voz ao patamar do jazz instrumental (STOLOFF, 1996).

No início dos anos 40 do século XX, começam a notar-se os efeitos dos intensos estudos, dedicação e criatividade dos músicos que haviam atravessado a era do swing. Começava a insurgir-se uma geração de jovens músicos denominados “modernos”, e que se afastavam do conceito tradicional do entretenimento que a música Swing articulava (GRIDLEY, 2003). O bebop (ou apenas bop) detinha características que afastavam os músicos dos conceitos mainstream de entretenimento. Os pequenos grupos de bebop utilizavam menos arranjos e focavam-se a improvisação e no virtuosismo dos solistas (GRIDLEY, 2003).

Com o bebop, modifica-se também a abordagem ao scat singing. Ella Fitzgerald (1917-1996) veio nos anos 40 do século XX a evidenciar-se como uma virtuosa do estilo “bop scat”. Na década seguinte cantou reportório de Cole Porter, Irving Berlin, George Gershwin, Halord Arlen, Richard Rogers e Lorenz Hart, Duke Ellington e Billy Strayhorn. A sua voz caracterizava-se por ser um “instrumento” leve e ágil, com uma extensão muito considerável (MARTIN, 2005). Sem sacrificar o significado das linhas melódicas dos compositores que interpretava, Ella ornamentava frequentemente os temas com interessantes improvisações e blues riffs. Estas improvisações leveram Ella Fitzgerald, a certa altura, a ser considerada uma solista como qualquer outro instrumentista (STOLOFF, 1996).

Nesta fase, muitos outros nomes foram relevantes para a improvisação vocal, nomeadamente Sarah Vaughan, Betty Carter, Billie Holiday, Joe Williams, Eddie Jefferson, Lambert, Hendricks & Ross, Anita O’Day. Nos anos 60 do século XX, o jazz teve um acentuado decréscimo na sua popularidade. Com o movimento experimental do free-jazz e, em simultâneo, o surgimento das bandas de rock, tornou-se difícil para a maioria dos músicos manter a sua carreira (STOLOFF, 1996). O scat, que pouca ou nenhuma expressão teve no free jazz, começa a reaparecer noutros contextos. Destacam-se Al Jarreau e o grupo Manhattan Transfer.

Mais tarde, começam a instalar-se os movimentos musicais associados às artes performativas.
John Cage (1912-1992), usou como ninguém instrumentos não convencionais, e instrumentos convencionais de forma não convencional, estimulando vários cantores a utilizar a voz de forma alternativa, como é patente no trabalho de Meredith Monk (n. 1942) e do qual provém a Extended Vocal Technique. Esta técnica envolve o emprego de arranjos complexos e tensos, com a inclusão de gritos, uivos, respirações associadas a movimentos tússicos e suspiros, para a criação de um efeito homogéneo descrito como “uma cantora folk combinada com um pássaro bebé” (MARRANCA, 2014). Nesta altura, de acordo com Marranca (2014), a voz deixa definitivamente de imitar outros instrumentos para se comportar como um instrumento específico em si mesmo (MARRANCA, 2014).

No final dos anos 70 do século XX destacam-se os cantores europeus Urszula Dudziak e Lauren Newton, e os americanos Jay Clayton e Bobby McFerrin, enquanto impulsionadores de um conceito expandido de scat, através do qual integram elementos da música folk, sons pouco convencionais e técnicas vocais inovadoras (STOLOFF, 1996). Dono de uma extensão vocal que vai do baixo ao soprano, McFerrin estabeleceu os padrões da técnica instru-vocal como ela é praticada nos dias de hoje (STOLOFF, 1996), tendo posto em prática o conceito de vocal bass, acompanhando-se a si próprio nos seus concertos a solo. Para além disto, ainda adiciona elementos percussivos, através de palmas ou de pequenas pancadas no peito ou em outras partes do corpo. Tudo isto veio mudar a forma como pensamos a ideia de “one man band” para sempre (GRIDLEY, 2003).

No meio do jazz contemporâneo, podemos ainda identificar cantores que (alguns tendo já iniciado as suas carreiras há várias décadas) continuam a desenvolver novas técnicas de utilização da voz, percorrendo um caminho de descoberta e inspirando um número considerável de músicos. Podemos, por exemplo, nomear as asiáticas Youn Sun Nah (n. 1969) e Jen Shyu (n.1978), os americanos Theo Bleckmann (n. 1966), Lalah Hathaway (n. 1968) e Gretchen Parlato (n. 1976), e as portuguesas Maria João Grancha (n. 1956) e Sara Serpa (n. 1979).


Discussão das Entrevistas

No âmbito da presente investigação entrevistei as seguintes cantoras: Rita Martins, Sara Serpa, Luciana Souza e Rebecca Martin. Apesar de ter recorrido a um guião com “ideias chave”, deixei espaço para o desenvolvimento de conversas mais ou menos informais, de modo a conseguir estimular o surgimento de novas questões no decurso da entrevista. 

Cada entrevista começou por uma contextualização estética, geográfica e cultural, por forma a tentar recolher informação sobre o meio no qual estas cantoras se inserem, e perceber como, na sua carreira, surgiu a utilização da voz como instrumento. De um modo geral, o interesse na voz como instrumento de improvisação sem letra surge de forma inata através de uma propensão instintiva para a “experimentação” vocal. Por outro lado, a aprendizagem formal e informal da música deteve também um papel fundamental no desenvolvimento da curiosidade por esta abordagem. Estas cantoras referem também que a dificuldade em assimilar e articular palavras numa língua estrangeira também as levou a desenvolver uma abordagem que contempla o emprego da voz sem letra.

As entrevistadas perspectivam a voz enquanto instrumento em si mesmo.
A maioria defende que o processo de cantar instrumentalmente parte da imitação: da mesma forma que as crianças adquirem a linguagem através da imitação, os músicos aprendizes começam por reproduzir frases musicais dos seus mentores. 

A entrevistadas defendem unanimemente também que a presença de letra condiciona a abordagem do cantor em relação à obra interpretada. Contudo, acrescentam que, se por uma lado a letra facilita o processo de comunicação com o público, sem esta goza-se de uma maior liberdade na articulação frásica, passando neste caso a estar implícita a responsabilidade de chegar ao publico, recorrendo-se apenas à melodia.

Contudo, segundo as entrevistadas, é preciso tomar em consideração a importância da experimentação e da criação de uma intimidade entre o cantor e a música, mesmo quando esta provém de uma tradição musical que não o jazz. Todas as fontes musicais podem ser consideradas recursos possíveis, dependendo de como o cantor as aborda e as utiliza na performance.

Os recursos que as entrevistadas utilizam para exteriorizarem sentimentos e emoções são: o estudo da arquitectura melódica e harmónica de peça; as suas experiências passadas, que conferem uma abordagem pessoal e permite responder perante contextos musicais complexos; a capacidade técnica, necessária à adaptação a cada momento musical; e a sensibilidade para “oferecer à música aquilo que ela precisa no momento”, por forma a transmitir eficazmente uma ideia.

Relativamente às estratégias adoptadas no processo improvisativo, as entrevistadas nomeiam primeiramente a intuição enquanto ferramenta de improvisação. Sendo a voz um instrumento integrado no corpo do cantor, a sua utilização deverá ser, numa primeira instância, intuitiva. Depois, impõe-se a utilização de um conhecimento mais teórico. Torna-se assim fundamental saber harmonia, interagir ritmicamente, e ouvir os restantes músicos. Idealmente, o cantor/improvisador deve chegar a um “estado de alerta” no qual estas duas realidades – intuição e teoria – se conjugam de forma harmoniosa.

Em termos de comunicação com o público através da música, segundo estas cantoras, é fundamental “contar uma história”. As entrevistadas argumentam que as palavras poderão restringir o sentido musical, pelo que a liberdade do discurso improvisado sem letra, poderá facilitar também a comunicação não verbal. Mas se a ausência de palavra providencia liberdade, acarreta também a necessidade de um maior controlo dos elementos não-verbais da comunicação.

Em relação à questão do processo de construção de “credibilidade”, é consensual a necessidade de uma mudança de atitude relativamente à forma como os cantores são reconhecidos pelos seus pares e por outros agentes do meio.  Segundo Sara Serpa:

 “É fundamental uma mudança de atitude nas escolas em relação aos cantores: deve ser-lhes exigido o mesmo que aos outros alunos instrumentistas, mas também se deve reconhecer que a voz é um instrumento singular e fomentar/desenvolver o espaço para os cantores crescerem/ aprenderem de uma forma inclusiva e criativa” (SERPA, 2016).

“ (...) Os cantores têm que perceber que se querem fazer uma carreira de instrumentistas vocais, têm de dominar um conjunto de linguagens e teorias onde se vai basear a sua prática. É isso que fazem todos os outros músicos. Tudo o que seja menos que isso irá ser criticado de forma severa, porque está simplesmente desenquadrado do contexto onde se pretende inserir. Cantar instrumentalmente não se limita a debitar notas aleatórias em cima de um conteúdo. É preciso que haja uma compreensão a um nível profundo do que está a acontecer” (MARTIN, 2016).

Segundo Sara Serpa e Rita Martins, se forem criadas as condições necessárias de trabalho, se o estudo for prolífico, e a sua competência inquestionável, não haverá espaço para problemas de credibilidade junto dos cantores, e o público estará disponível para os receber de braços abertos:

“Cantores competentes e profissionais não sofrem problemas de credibilidade”. (SOUZA, 2016).
“ (...) é sempre útil interrogarmo-nos sobre qual é o papel da voz no jazz e como podemos continuar a evoluir como instrumento, em vez de nos tentarmos incluir num contexto pré- definido (SERPA, 2016).

“Independentemente do público, (...) para quem está interessado em entrar nesse processo [de cantar instrumentalmente], é essencial que o possa fazer. (..) O que é fundamental é que existam espaços e comunidades que preservem a possibilidade de vivência desta necessidade (...). Porque esta necessidade (...) essencial, está relacionada com a própria necessidade de criação. É um acto que me parece crucial para o desenvolvimento humano, musical, intelectual, artístico e de interacção com o outro, que não se pode perder. Portanto, desde que se preservem esses espaços, penso que faz sentido e vai sempre existir público. Pode não ser é a quantidade de público que nós, enquanto artistas, desejaríamos, mas que, ainda assim, se junta em festivais ou outros momentos, e que acredito que vai continuar a existir ao longo do tempo” (MARTINS, 2016).

“O público está sempre preparado (...) e é mais inteligente do que os promotores (...) normalmente assumem” (SERPA, 2016).


Repertório

- Critérios de escolha do repertório

O primeiro critério de selecção de repertório para este projecto foi, naturalmente, a escolha de música sem letra, de modo a poder explorar-se arranjos para a voz instrumental.

Seleccionaram-se temas do universo do jazz contemporâneo e da música brasileira, independentemente de estes terem ou não cantores nas suas gravações/versões originais. Foram também incluídas no repertório do projecto peças originais.

O repertório é constituído pelas seguintes peças:

  • Merge (Jorge Ramos) 

  • Música das Nuvens e do Chão (Hermeto Pascoal) 

  • Maracatu (Yuri Daniel) 

  • Lights (Sónia Oliveira) 

  • Aceitação (Sónia Oliveira) 

  • Lamento (Sónia Oliveira/Carlos Garcia) 

- Breve descrição do repertório

MERGE

“Esta composição surge a partir de uma encomenda da cantora Sónia Oliveira, para uma ideia híbrida que esta me apresentara sobre uma invulgar ligação entre a voz e o contrabaixo. A ideia proposta era uma tentativa de ligar/unir (merge) o mundo clássico-erudito com o mundo jazzístico, usando os instrumentos propostos. Assim sendo, procurei estudar características do jazz (já que era a área que tinha estudado menos) para depois relacioná-las com as técnicas clássicas-eruditas. Um exemplo disso é o suposto walking bass (normalmente associado ao jazz) que aparece no decorrer da peça, progressivamente transformado pelo erudito.” Jorge Ramos, 2015.

Nesta peça em duo com contrabaixo foi possível explorar diversas texturas da voz, desde registo grave até ao agudo, o que requer agilidade técnica e precisão na leitura da notação musical. São aqui também exploradas características de uma escuta cuidada, uma vez que o cantor interage apenas com outro instrumento que se movimenta num registo muito distante do vocal.

MÚSICA DAS NUVENS E DO CHÃO

Esta composição é original de Hermeto Pascoal, e encontra-se editada originalmente no álbum “Cérebro Margnético” de 1980 (Warner Music Group).
A partitura utilizada como referência pertence ao livro “Tudo é Som”, elaborado por Jovino Santos Neto.

Este tema foi escolhido pela sua variedade de ambientes.
Através da exploração da melodia, o tema desenvolve-se primeiramente numa secção em Rubato, passando depois para uma estrutura em 7/4. Esta diversidade pode ser relacionada com o título da peça, “nuvens” e “chão”, que, representando imagens quase opostas, são também assinaladas por momentos musicais antagónicos.
O desafio para a voz foi o de integrar estas ideias ajudando a transmiti-las através da performance.

MARACATU

Este tema, original do baixista Yuri Daniel, está gravado no segundo álbum do mesmo, “Ritual Dance”, editado em 2015 (Ed. de Autor).
Tive contacto com a sua música através do concentro de apresentação de “Ritual Dance”. Estando as melodias a cargo do trompetista Johannes Krieger, a sua “cantabilidade” foi para mim óbvia. Rapidamente memorizei grande parte das melodias do disco (ao escutá-lo algumas vezes) e gostei muito do processo informal de adaptação das articulações sugeridas pelo trompete à voz. Funcionou como um exercício de desenvolvimento técnico, ao mesmo tempo que me diverti a vivenciar a música.

LIGHTS

Este tema foi escrito em 2013 como exercício criativo proposto pelo guitarrista Nuno Costa, no contexto da Licenciatura em Jazz e Música Moderna, na Universidade Lusíada de Lisboa.
A inspiração para a composição surgiu a partir das luzes nocturnas da cidade de Lisboa. Esta peça tem a estrutura A+B+B+C+A+B+B. As partes A e B remetem para a imagem das luzes enquanto caminhamos, enquanto que a parte C remete para uma representação das mesmas luzes quando viajamos de carro, ou seja, com “rastos” e “movimentos”.

ACEITAÇÃO

Este tema escrito em 2016 retrata o caminho irregular que pode representar a aceitação de um facto que, não se podendo mudar, está presente e vai contra a nossa própria natureza.

LAMENTO

Esta peça foi escrita em colaboração com o pianista Carlos Garcia.
Pode ser ouvida como um murmúrio que pretende passar uma mensagem de pedido de desculpas, entre o mundo dos vivos e o desconhecido mundo dos mortos.

- Músicos Convidados

Para colaborar musicalmente neste projecto foram convidados o compositor Jorge Ramos, o pianista Carlos Garcia e o guitarrista José Miguel Vieira, que desde a génese do projecto têm vindo a trabalhar comigo as dimensões do som vocal instrumental, bem como a composição e a improvisação nesta óptica.

Estes músicos colaboraram tanto na composição da música como na elaboração dos arranjos. Carlos Garcia e José Miguel Vieira trabalharam comigo os arranjos da música original, tendo sido fundamentais na conceptualização da ligação entre a voz e os outros instrumentos; a colaboração com Jorge Ramos teve como principal objectivo a exploração do som vocal propriamente dito.

Surgiu também a oportunidade de colaborar com o baixista Yuri Daniel, através de trabalho de composição conjunta e realização de arranjos.

Os músicos que integram a performance são:

Carlos Garcia – piano; Yuri Daniel – baixo eléctrico; Bruno Pedroso – bateria; João Vargas – Contrabaixo


Reflexão Final

A elaboração deste trabalho permitiu-me sobretudo passar a abordar a performance com maior liberdade. Em primeiro lugar, a reflexão histórica e contextual estimulou o aprofundamento de uma temática subjectiva, uma vez que a interpretação e a transmissão de emoções através da música são conceitos complexos que podem assumir configurações muito pessoais. Em segundo lugar, percebi que a componente instintiva da performance é não só válida, como também fundamental. A meu ver, os aspectos mais espontâneos da performance musical precisam de ser não só reconhecidos como tal, como também trabalhados.

Este projecto constitui-se enquanto um processo de estudo que me aproximou ainda mais do universo da voz instrumental, o que me estimulou artisticamente a compor e interpretar sob esta perspectiva artística.

O facto de ter tido a possibilidade para conversar aberta e descontraidamente com várias cantoras de renome, foi uma importante experiência, apesar de já as ter observado em circunstâncias prévias. O contacto com as suas perspectivas contribuiu para o desenvolvimento de uma visão mais aprofundada sobre os processos subjacentes à sua prática performativa. Além da música, abordou-se também outros aspectos como por exemplo as diferenças de género, tema fundamental para o universo dos estudos de jazz.  

 

 [1] A recolha de dados em Ciências Sociais implica sempre algum tipo de observação, já que tudo o que não é possível observar ou identificar, também não é possível estudar. Uma das vantagens da observação é que o investigador consegue colher dados sobre o seu objecto de estudo tal e qual como ele decorre, ou seja, no seu contexto natural, o que lhe confere maior autenticidade em relação às observações feitas em contexto “laboratorial” (FORTIN, 1996).

 


Referências Bibliográficas

Appelman, R. 1967. The science of vocal pedagogy. United States of America, Indiana University;

Berlanga-Ryan, E.  Esperanza Spalding: The Intimate Balance. All About Jazz. February 14, 2011. http://www.allaboutjazz.com/esperanza-spalding-the-intimate-balance-esperanza-spalding-by-esther-berlanga-ryan.php.

Fortin, M. 1996. O Processo de Investigação: Da concepção à realização. Loures, Lusociência;

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