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Música contemporânea em instrumentos antigos

  • Intérprete: Pedro Couto Soares
  • Instrumento / Área: Flauta de Bisel
  • Instituição: Escola Superior de Música de Lisboa
  • Programa:

    Moritz Eggert  Ausser Atem

    Makoto Shinohara  Fragments

    Luciano Berio Gesti

    [Gravação e edição  Áudio e Video: Frederico Vilar, Tomás Quintais e Eduardo Mota]

 
Ausser Atem | Moritz Eggert
 
Fragments| Makoto Shinohara
 
Gesti | Luciano Berio

 

 

Tendo caído em desuso na segunda metade do século XVIII, a flauta de bisel não sofreu as modificações tecnológicas a que foram submetidos os outros instrumentos de sopro ao longo do século XIX. O revivalismo dos instrumentos antigos a partir dos finais desse século, levou Arnold Dolmetsch a construir cópias de flautas de bisel barrocas e o instrumento adquiriu uma enorme popularidade ao longo do século XX.


Até cerca de 1960, compôs-se um acervo de obras para este instrumento, geralmente num idioma neoclássico. Na década de 60, Frans Brüggen desenvolveu uma carreira internacional de grande sucesso. Para incluir nos seus recitais a solo, aquele flautista holandês encomendou obras a compositores contemporâneos, que num estilo mais vanguardista procuraram explorar inesperados recursos do instrumento, ultrapassando as fronteiras daquilo que aparentava ser o seu carácter delicado, contribuindo decisivamente para a ampliação das suas possibilidades técnicas, dotando novas gerações de instrumentistas de ferramentas utilizáveis também no repertório tradicional.
Executar obras do século XX num instrumento de tipologia barroca, cuja construção não acompanhou a evolução da linguagem musical, se por um lado é um evidente mas assumido anacronismo, acaba por ser a continuação lógica de um processo de redescoberta e reinvenção das capacidades de um instrumento obsoleto.
Escolhi para este vídeo duas obras dedicadas a Frans Brüggen, Gesti (1966) de Luciano Berio e Fragmente (1968) de Makoto Shinohara, e uma peça de 1994, Ausser Atem de Moritz Eggert. As duas primeiras são tocadas em flauta tenor, concretamente duas voice flutes em Ré a 415 Hz. Em Ausser Atem para um flautista tocando três flautas diferentes, soprano em Dó e altos em Fá e Sol, usei flautas a 440 Hz.
Neste artigo, pretendo refletir sobre algumas questões e desafios levantados pela abordagem destas peças. A sua aparente ou real dificuldade, se por um lado tende a colocar o flautista num estado de tensão que em nada contribui para o sucesso da performance, não deixa de ser parte integrante das obras e do espetáculo. A tensão dramática que a sua execução deve suscitar é, infelizmente, muitas vezes sentida e traduzida pelo executante em tensão muscular. Quem deverá suar é o ouvinte e não o intérprete que deve praticar para tornar o impossível possível, o possível fácil, e o fácil elegante [1].

Por outro lado, estas peças levaram-me a desconstruir a técnica laboriosamente adquirida ao longo de anos, permitindo-me rever e readquirir uma técnica baseada na lei do menor esforço e numa consciência propriocetiva mais apurada. Para isso, a Técnica Alexander foi uma ferramenta essencial, pois através de uma consciencialização de hábitos automatizados possibilita que eles sejam substituídos por outros mais eficientes. É precisamente na desautomatização de coordenações praticadas até mergulharem no subconsciente que se baseia a peça de Berio, que exige uma separação deliberada dos movimentos dos dedos e da língua, contrariando anos de prática. Da mesma forma, Ausser Atem obriga o intérprete a dissociar o controlo das duas mãos para tocar duas flautas simultaneamente enquanto as cordas vocais são postas em vibração.
Tornou-se assim fundamental, dissociar tensão muscular de “tensão” musical e controlar as emoções do intérprete durante a execução, muitas vezes distinguindo-as daquelas que se pretende suscitar no ouvinte. A prática deste repertório permitiu testar, refinar e desenvolver técnicas de estudo convencionais ou mais inovadoras, evidenciando a dialética e alternância entre análise e integração e entre controle consciente e automático, em que a atribuição de sentido musical contribuiu, muitas vezes decisivamente, para a resolução de meros problemas psico-motores.

 

A minha experiência como professor e flautista, executando música antiga e contemporânea em cópias de instrumentos originais, obrigou-me a desenvolver uma maior consciência dos ingredientes expressivos de diferentes linguagens e estilos musicais.
A que ponto é possível “ensinar” a expressividade é matéria de controvérsia entre os músicos, entre os quais continua a ser habitual atribuir a um indefinível conceito de talento a capacidade de usar de forma convincente os ingredientes expressivos. Não sendo aqui a ocasião para discutir em detalhe esta controvérsia entre a comunidade científica e a comunidade dos músicos, permito-me apenas tecer algumas considerações que na minha opinião poderão ajudar a desfazer alguns equívocos que estão na base desta questão.
A comunicação da expressão musical tem sido alvo de estudos científicos baseados na análise e comparação por computador das variações de timing e dinâmica na performance de diferentes músicos, mas um conhecimento explícito e consciente dos parâmetros manipuláveis e dos princípios subjacentes, não é suficiente para produzir performances convincentes.
Variações agógicas e dinâmicas já foram escrutinadas por músicos, muito tempo antes do advento das tecnologias de gravação e análise por computador. Silvestro Ganassi em 1535 tentou traduzir em notação musical, com a precisão possível, algumas das subtilezas do rubato essenciais para uma verdadeira arte da diminuição e J. J. Quantz em 1752 procurou descrever com grande detalhe as nuances dinâmicas típicas da execução dos ornamentos dos adagios no estilo do período. Todos eles avisam o leitor de que as palavras não são suficientes e que portanto um bom modelo, de preferência um cantor, é indispensável para o sucesso de um estudante diligente.
A notação precisa destas subtilezas geraria certamente partituras de uma complexidade e abundância de indicações comparáveis às de compositores da segunda metade do século XX, como por exemplo Brian Ferneyhough, o mais famoso representante de uma corrente denominada “nova complexidade”. Estes compositores, numa atitude simétrica da dos músicos de séculos anteriores, procuram traduzir na notação as subtilezas e complexidades de uma linguagem musical que está na sua imaginação.
Aprender os diferentes estilos da música antiga, cuja tradição e prática performativa se perdeu, lendo os tratados e descrições da época, sem modelos auditivos, pode ser tão complexo como a aprendizagem das obras de Ferneyhough por um músico com uma formação clássica baseada na tradição romântica confrontado com uma partitura ilegível. A consciência destas complexidades, usada como ferramenta pedagógica, pode ser desencorajadora, mas também pode ser útil.
Uma comparação da notação de uma peça como Cassandra’s Dream Song de Brian Ferneyhough ou a Sequenza de Luciano Berio com o Adagio que Quantz no seu Essay on the True Art of Playing the Flute, sobrecarregado com todas as indicações dinâmicas e de articulação por ele descritas no texto, mostrará uma densidade de indicações performativas semelhante. Também algumas das complexidades rítmicas das diminuições do Tratado de Silvestro Ganassi não são muito mais simples que as dificuldades rítmicas da música do século XX. Podemos concluir que qualquer tentativa para descrever as subtilezas de uma linguagem resultam numa partitura extremamente complexa que desencorajaria qualquer principiante, destituído de uma demonstração por um executante experimentado na linguagem em causa.

 

 

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Fragmento do Adagio de Quantz com as indicações dinâmicas por ele descritas no capítulo XIV: “De la maniére, dont on doit jouer l’Adagio”.

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Exemplo de diminuição combinando as várias proporções rítmicas extraído de “LA Fontegara” de Silvestro Ganassi.

 

A implicação é que ensinar os princípios e as técnicas subjacentes da expressão musical através de uma descrição ou explicação analítica pode ser tão estéril ou ineficaz, como ensinar uma criança a falar explicando-lhe as regras da fonética e da gramática. Mas, por outro lado, ignorar esses princípios, e depender exclusivamente dos métodos tradicionais baseados na demonstração, no uso de metáforas ou na descrição das emoções sentidas pelo performer ou que se pretendem suscitar no ouvinte, não é garantia absoluta de sucesso. A necessidade de uma abordagem equilibrada torna-se tanto mais premente, quanto a vastidão do repertório de diferentes estilos que um estudante de música contemporâneo tem de abarcar. Os músicos que procuram objetivar os elementos expressivos da execução e os investigadores que reconhecem as limitações de uma análise quantitativa deveriam desbravar um terreno comum de entendimento mútuo num trabalho interdisciplinar mutuamente enriquecedor.

Grande parte da música de Ferneyhough, especialmente nas obras a solo, soa como uma improvisação livre, e no entanto, ela é altamente organizada, extremamente precisa na sua notação e exigente na sua execução. Coloca-se a questão de saber o que ganhamos com o dispêndio de energia na composição e escrita desta música, e as subsequentes exigências colocadas ao performer, quando um resultado semelhante poderia, possivelmente, ser obtido com uma improvisação. Ferneyhough argumenta que o comprometimento e a tensão que a reprodução da partitura envolve são um elemento estrutural da sua linguagem.
Esta sensação de que uma peça soa como uma improvisação livre, acontece em Gesti. Podemos, por exemplo comparar o fragmento 10 da peça de Makoto Shinohara com algumas secções de Gesti. O compositor japonês propõe ao flautista que improvise com independência dos parâmetros de intensidade, articulação e movimento dos dedos. Um processo que em Gesti não é deixado ao critério do flautista, pois esses parâmetros são notados com precisão, embora o resultado sonoro seja até certo ponto imprevisível ou aleatório.

 

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Fragmento 10 da obra de Makoto Shinohara.

 

No entanto, só depois de trabalhar a obra de Berio, procurando seguir as suas indicações, me sinto capaz de fazer uma improvisação que convincentemente se assemelhe ao “estilo” da peça e incorpore a sua linguagem. E, por outro lado, fruto do trabalho da obra de Berio, o resultado da execução do fragmento de Shinohara, bem como a minha capacidade de lhe imprimir maior clareza e convicção alterou-se significativamente. Curiosamente, quando estudava em Amesterdão nos anos oitenta tive duas atitudes em relação a estas duas obras. Toquei Fragmente no meu exame final, omitindo o fragmento 10 [2] , porque não me sentia capaz de o executar de forma convincente. Sobretudo porque a teatralidade envolvida colidia com uma certa timidez e insegurança que me inibia quando tocava em público. A obra de Berio, que li transversalmente não me seduziu, porque precisamente me parecia que a sua preparação envolveria um investimento desmesurado para conseguir um resultado que estava convencido ser possível improvisando com base nas técnicas envolvidas. No entanto, inspirando-me na sonoridade das interpretações que ouvia as minhas improvisações não me satisfaziam. Na realidade, estava a procurar queimar etapas, prescindindo de construir uma nova forma de abordar a técnica do instrumento a partir dos seus elementos básicos. Só muitos anos depois me decidi abalançar ao desafio, para concluir que, de facto, só depois de adquirir a nova técnica e assimilar a sua linguagem, o resultado seria convincente.

 

A experiência do executante e a experiência do ouvinte

 

Alcantara (2011: 236-237) descreve os três papéis que desempenhamos em cada momento das nossas vidas. Somos simultaneamente atores, recetores e testemunhas. Como atores, agimos voluntariamente. Como recetores apercebemo-nos através dos nossos sentidos das consequências das nossas ações. Como testemunhas observamos, analisamos, descrevemos e explicamos ou compreendemos. Recetor e testemunha necessitam de uma consciência atenta, não devendo confundir os dois papéis. Não é fácil para um músico no momento da execução dissociar estes três papéis.
Uma das maiores dificuldades com que me confrontei no fragmento 12 da peça de Shinohara foi controlar a minha excitação ao tocar, mantendo o carácter "descontrolado" do fragmento. Como ator, movia os dedos freneticamente, com pausas irregulares entre cada grupo, como exigido pelo compositor. Como recetor, sentia a excitação que o fragmento suscita e deixava-me contagiar por ela. Só consegui adotar o papel de testemunha quando ouvi uma gravação de um concerto e verifiquei que o resultado era muito diferente do esperado. A velocidade excessiva e a consequente falta de clareza, mesmo considerando que as notas estavam todas lá, não suscitavam o efeito que eu pretendia e sentira no momento da execução. Sobretudo as pausas eram demasiado curtas. Gravei uma versão mais controlada, que toquei com a sensação de que o carácter do fragmento se perdia, pois eu não estava “suficientemente” excitado. Comparando as duas gravações, cheguei à conclusão que a versão em que eu não me deixara submergir pela emoção era consideravelmente mais convincente e espetacular.

 

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Fragmente de Makoto Shinohara: excerto do fragmento 12.

 Carl Philipp Emanuel Bach no seu “Ensaio sobre a verdadeira maneira de tocar um instrumento de tecla” (1753) afirma que “um músico não podendo emocionar senão quando ele próprio está emocionado, deve ele próprio sentir todos os sentimentos que quer despertar nos seus ouvintes; assim pode fazer compreender as suas sensações e emociona-os assim da melhor maneira através de uma sensação partilhada” (13 do 3º capítulo, p. 96). Avisa no entanto que enquanto que uma gesticulação feia é indecente e nociva, uma boa, pode ser útil e ajudar as nossas intenções junto dos ouvintes.
Mas a minha experiência mostrara-me que uma atitude totalmente assumida desse tipo nem sempre contribuía para uma interpretação satisfatória. Se concordo que o intérprete deve conhecer e ter sentido as emoções e afetos, senti-las vividamente no momento da execução pode criar situações de descontrolo. Há que manter um certo distanciamento no momento, de forma a permitir-nos manter a frieza necessária para todos os parâmetros técnicos e musicais. Tal como um ator, que se se emocionar todas as noites no espetáculo, corre o risco de se esgotar, o músico deve “representar”. Em relação a esta questão tenho uma opinião ambivalente. Se é inegável que experiência das emoções no momento da execução pode ser fonte de inspiração imbuindo a execução de um sentido mais ou menos transcendente; é igualmente certo que uma análise fria dos parâmetros sonoros que contribuem para a expressão dos afetos, permite um refinamento da interpretação. A expressão intuitiva de uma emoção, pode ser destruída, pelo menos temporariamente, pela análise, mas desse processo advém uma capacidade de a representar depois com maior clareza.
Se não me estou a emocionar com a música que estou a tocar, será que posso emocionar o público? Há duas situações em que se tornou clara para mim esta ambivalência. A posterior audição da gravação de um concerto permitiu-me confrontar a experiência do intérprete com a experiência do ouvinte.
Nos anos oitenta começava um concerto com uma peça a solo. Tinha cuidadosamente preparada a interpretação, definindo claramente o carácter e afeto de cada secção. Num ensaio, vivera intensamente os contrastes e tivera, pode-se dizer, uma experiência de fluxo. O prazer durante a execução fora enorme e em cada momento, vivia claramente os diferentes estados emocionais e sentia e exprimia as mais variadas inflexões no discurso, que tinha cuidadosamente planeado.
No entanto, a experiência no concerto foi extremamente negativa. Estava-se em véspera de eleições. Assim que comecei a tocar, uma caravana de propaganda de um partido passou em frente à igreja e deu várias voltas ao largo, com altifalantes vomitando slogans e "música pimba" em "altos berros". O ruído durou praticamente os 4 minutos de duração da peça. A minha experiência foi de uma enorme frustração e total desconcentração em relação àquilo que estava a tocar. Passaram-me pela cabeça as maiores pragas à campanha eleitoral, completamente esquecido de todos os ingredientes interpretativos que cuidadosamente planeara. Tive a sensação de que tocara da forma mais mecânica e desprovida de sentido musical, incapaz de silenciar o meu diálogo interior. Uma voz segredava-me que o resultado da minha execução estaria a ser uma monumental maçada.
Após o concerto, foi sem qualquer expectativa que ouvi a gravação, preparado para avançar rapidamente o gravador para a segunda peça que, essa sim, fora executada em total silêncio. No entanto ao ouvir as primeiras notas do solo inicial fiquei preso e ouvi a gravação da peça na íntegra. Por um lado fiquei surpreendido pela tensão e clareza da interpretação. O ruído que tanto me incomodara durante o concerto, captado pelo microfone surgia muito em segundo plano. Não sei se fiquei preso pela vivacidade da interpretação e clareza do discurso, se pela surpresa de que o que estava a ouvir me proporcionava uma experiência tão diferente da que eu tivera durante o concerto. Provavelmente pelas duas.
Outra experiência diferente, mas que ilustra da mesma forma esta dissociação entre a minha experiência enquanto intérprete e enquanto ouvinte, tem a ver com excitação que proporciona a execução ou a audição de um andamento vivo, virtuosístico e tecnicamente desafiante. Nos meus tempos de estudante a excitação de tocar um andamento no limite das minhas capacidades técnicas era parte integrante do carácter da música. A vivacidade e a excitação de estar a testar os meus limites, eram sentidas por mim e pareciam assim ser transmitidas pela música. Anos depois, com uma técnica mais desenvolvida e segura, conseguia tocar essas peças com andamentos consideravelmente superiores, mas quando ouvia uma gravação, aquilo parecia-me exageradamente rápido e pouco percetível, apesar de tecnicamente “limpo”. Inversamente, quando tocava num andamento em que tudo era fácil, sentia que faltava “tensão” e vivacidade. Várias vezes fui confrontado com essa experiência: quando as coisas eram fáceis, parecia-me que a execução era “cinzenta”, desprovida de vigor. Mas uma audição de uma gravação contradizia a minha experiência. No entanto sentia falta daquela sensação de estar próximo do meu limite; provavelmente uma certa adição à adrenalina...
Perceber a diferença entre a experiência vivida da execução e a experiência da audição do resultado é uma tarefa fundamental para um músico e que nestas peças se torna particularmente relevante. Na realidade, trata-se de um trabalho de dissociação entre processo e resultado. Aqui entendo por processo, os movimentos e sensações concomitantes necessários para a execução. Resultado é o produto sonoro desses movimentos. Para mim (e certamente para a maioria dos músicos) quando toco, aquilo que ouço está intimamente associado às sensações que acompanham os movimentos da execução. O prazer que me dá tocar flauta advém tanto (ou por vezes mais) dessas sensações, como do resultado sonoro. A avaliação que faço do resultado está por isso dependente dessas sensações. Se me sinto bem, se danço ao som da música que faço, é muito possível que me convença da qualidade do resultado. Se me sinto desconfortável, nervoso ou ansioso, o resultado parece-me da mesma forma desagradável, pouco convincente, pouco claro. Numerosas vezes verifiquei que alunos que se movem exageradamente quando tocam, mimando com o tronco e os braços a pulsação, o contorno da melodia, transformando os “gestos musicais” em contorções musculares que degradam a qualidade do resultado sonoro, melhoram substancialmente a qualidade da execução quando consigo convencê-los a reduzir os movimentos corporais. No entanto, esses alunos, quando são levados a manterem uma relativa imobilidade que lhes é pouco habitual, reagem negativamente. Por um lado, impor-lhes limites aos movimentos, tende a criar rigidez. Essa rigidez é muitas vezes consequência de não terem conseguido eliminar o impulso para se moverem excessivamente, contrariando-o com tensão muscular. Na realidade, se o aluno sente necessidade de se mover, a mera instrução para não o fazer não resolve o problema. Por outro lado, a ausência da dança e movimentos expressivos suscitados pela música, levam-nos a convencer-se de que ao eliminarem certo tipo de movimentos, deixaram de ser expressivos. Nesses casos é quase sempre indispensável o feedback de colegas que, ouvindo o resultado, lhes confirmem que de facto soam tão ou mais expressivos. Nestes casos o que se passa é que a perceção do executante é resultado de uma associação das sensações e movimentos e do resultado do que ouvem. Em muitos casos, na realidade, ouvem mais com o corpo e as sensações propriocetivas do que com o ouvido. Naturalmente que há movimentos que ajudam a clarificar o sentido expressivo e o fraseio. Mas essa expressividade e fraseio devem ser primordialmente um produto sonoro e não visual ou propriocetivo. Há naturalmente que descontar que para muitos ouvintes menos prevenidos, a “expressividade” dos movimentos do executante podem distrair o ouvido levando a uma avaliação mais dependente do resultado visual do que do sonoro. Não há como fechar os olhos enquanto ouvimos, para percebermos até que ponto a nossa apreciação está a ser distorcida pela observação do executante.

 

O caso do gago

 

A pobreza do vocabulário pode facilmente contribuir para uma desadequada utilização de esforço físico para conseguir um determinado efeito. O vocábulo “tensão” é utilizado em muitos contextos que não envolvem esforço muscular acrescido. Em música fala-se de tensão harmónica, que provavelmente poderá criar uma tensão no ouvinte, mas não precisa de nenhum esforço adicional para ser criada pelo músico. Intensidade dinâmica tem muitas vezes uma relação inversamente proporcional à tensão muscular necessária. Um percussionista não usa maior tensão muscular para tocar forte: aumenta a amplitude do movimento das baquetas para que dessa forma elas embatam na pele ou na lâmina com mais força. Da mesma forma, um flautista necessita muitas vezes maior tensão para conseguir dosear e controlar a pressão do ar num pianissimo do que num fortissimo. A capacidade de discriminar os parâmetros da tensão necessária para conseguir um determinado efeito é uma competência que nem sempre se desenvolve com suficiente clareza. Esses parâmetros são a intensidade da tensão muscular necessária, mas também e sobretudo a localização dessa tensão (os músculos que a devem exercer e simultaneamente os músculos que devem permanecer distendidos não se envolvendo), e o momento em que a tensão deve ser exercida. Antes de um esforço há uma tendência para contrair músculos antecipadamente e depois do esforço nem sempre é fácil reduzir imediatamente a tensão nos músculos envolvidos na ação. É por isso fundamental desenvolver a capacidade de inibir tensões antecipatórias e desfazer tensões residuais.
Perante uma dificuldade iminente, tendemos a contrair uma série de músculos, reter a respiração e criar rigidez numa série de articulações. Esse padrão de tensões fica muitas vezes indelevelmente associado à nossa definição psicofísica do estado de alerta.
As nossas perceções resultam em larga medida das nossas experiências prévias, das nossas assunções e dos nossos objetivos ou necessidades. Tendemos a realizar aquilo que queremos ou necessitamos com base naquilo que a nossa experiência passada nos leva a assumir que vai resultar. Isso cria crenças que autolimitam a nossa capacidade de ultrapassar o limiar do que julgamos possível, nomeadamente no que diz respeito ao esforço que associamos ao controlo das nossas atividades. Frederik Mathias Alexander, quando tratou um gago verificou um fenómeno deste tipo: “…a familiar quantidade de tensão que lhe dava a ‘sensação correta’ era a quantidade desnecessária associada ao habitual uso dos mecanismos, do qual a gaguez era um sintoma” [3] (Alexander, 1985: 72). Ou seja, o gago era incapaz de tentar pronunciar certas sílabas antes de se colocar num estado de tensão muscular excessiva associada a todas as experiências anteriores e que portanto era “inconscientemente” considerada necessária para o ato de falar. Insidiosamente, essa preparação agravava a sua gaguez. O problema reside na convicção profunda de que a preparação para o ato de falar (ou tocar) exige toda uma parafernália de tensões preparatórias. Estudos neurológicos apontam no sentido da importância crucial da antecipação na construção da nossa perceção. “A perceção do esforço por aquele que o realiza resultará tanto de uma antecipação da força empregue como da informação sensorial do movimento produzido” [4] (Berthoz & Petit, 2006: 70). Muitos esforços que fazemos são previamente calculados antes do objeto que vai oferecer resistência gerar a informação propriocetiva que permitiria aferir a adequação do esforço. É por isso que quando pegamos numa mala ou cafeteira que julgávamos cheias, mas afinal estão vazias, o brusco movimento resultante prova que não esperamos pela informação sobre o peso do objeto para determinar a tensão necessária para o elevar. Esse esforço é calculado com base em experiências passadas e os músculos são acionados antes de sentirmos o peso real do objeto. Essa precipitação é descrita por Alexander como um hábito que “envolve a conceção e o procedimento de prosseguir diretamente para um fim sem considerar se os meios empregues são os melhores para o objetivo”, designando-o “end-gaining”. (Alexander, 2000: 11)
É pouco provável que alteremos as nossas perceções ou essas contrações antecipatórias automáticas a não ser que não consigamos fazer alguma coisa baseados nelas. Se as nossas ações parecem permitir-nos alcançar os nossos objetivos, não vamos alterar as nossas perceções e os nossos hábitos automáticos mesmo que nos provem que eles estão errados. Na realidade, o significado de “errado” neste contexto é uma perceção que não “resulta” para o sujeito. A capacidade para aprender depende em larga medida da capacidade de descartar perceções e hábitos errados e desenvolver outros, pois como afirma John Dewey no prefácio de um dos livros de Alexander, “usamos precisamente as condições que necessitam de reeducação como os nossos padrões de julgamento [5] (Alexander, 1995: 182). Aferimos a adequação dos nossos esforços com base numa deficiente perceção da sua eficiência. Corrigir a nossa perceção e interpretar mais criteriosamente as nossas sensações torna-se crucial pois, “todos querem estar certos, mas ninguém para para considerar se a sua ideia de ‘certo’ está correta” [6]  (Alexandre, 1995: 205).
Dissociar sincinesias, eliminando contrações supérfluas para a ação pretendida e discriminar pequenas diferenças de esforço são dois resultados da maior acuidade percetiva proporcionada pela prática da Técnica Alexandre. Questionar a fiabilidade da nossa perceção e procurar refiná-la e corrigi-la deveria ser uma das preocupações centrais de um músico.

 

A tensão nas pernas

It doesn’t alter a fact because you can´t feel it [7]
(Alexander 1995a: 206).

 Um exemplo desta questão, retirado da minha experiência pessoal, é revelador. Nos primeiros anos da minha carreira como flautista, comecei a aperceber-me de que no dia a seguir aos concertos acordava com as pernas pesadas, com uma ligeira dor muscular, semelhante à que tinha no dia seguinte a uma caminhada ou corrida. O fenómeno foi descartado como sendo resultado do que julgava ser a inevitável tensão do concerto. Seria então para mim impensável distrair-me, por momentos que fosse, durante um concerto, para prestar atenção ao que estariam a fazer os músculos das minhas pernas. A minha noção do carácter inclusivo e não exclusivo da concentração era então muito primária e a ideia (correta) de que a musculatura das pernas pudesse afetar negativamente a minha prestação era remota. Na realidade, nem sequer associava o cansaço posterior aos concertos a uma tensão excessiva e desnecessária dos músculos das pernas. Como afirma Alexander (1995a: 194), os problemas mais difíceis de resolver são aqueles que para nós não existem, porque não temos consciência deles.
Na sequência das primeiras aulas de Técnica Alexander comecei a desenvolver uma atenção mais inclusiva que me permitiu, numa primeira fase atender momentaneamente às sensações das partes do corpo não diretamente envolvidas na execução e mais tarde ter uma consciência global do estado geral de tensão e coordenação. A capacidade de me manter em pé com um mínimo de esforço muscular, um dos resultados das aulas, tornou-se extraordinariamente agradável. No entanto, desviar a atenção dos elementos julgados essenciais para uma boa execução (respiração, embocadura, língua e dedos) era extremamente desestabilizador, não tanto da execução, mas da crença na capacidade de prescindir de um controlo baseado numa atenção focada apenas nas especificidades da execução. No primeiro concerto em que consegui por momentos desviar a atenção para as pernas, verifiquei, com surpresa, como as contraía em três tipos de situações: antes de atacar a primeira nota, quando as dificuldades eram maiores e quando a passagem era particularmente expressiva. No primeiro caso procurava eliminar qualquer espécie de tremura nervosa, no segundo, tinha uma sensação de maior controlo e, no terceiro, associava maior tensão musical e expressiva a uma maior tensão muscular. Qualquer tentativa de me libertar dessa tensão nos momentos críticos, gerava uma sensação de pânico baseada numa crença profundamente enraizada de que não seria possível conseguir os resultados pretendidos naquele estado muscular, que sendo de facto mais confortável, nunca na minha experiência estivera associado à preparação para lidar com uma dificuldade. Nas primeiras situações em que consegui momentaneamente inibir essas tensões, se os resultados pareciam surpreendentemente melhores, perante qualquer pequeno acidente ou insegurança, a tensão regressava. Não acreditava na possibilidade de manter o controlo sem o “conforto” da tensão habitual. Estava perante um insidioso círculo vicioso provocado por uma associação de sincinesias: maior controlo exigido por dificuldades técnico-expressivas era acompanhado de tensão excessiva nas pernas; menor tensão nas pernas, apesar de permitir inesperados resultados positivos, esbarrava com a minha convicção de que à menor dúvida ou insegurança o estado de alerta despoletado para lidar com a situação necessitava daquela tensão nas pernas tão familiar. Libertar-me da crença na incapacidade de recuperar o controlo sem contrair as pernas (de forma compulsiva e involuntária), exigiu repetidas experiências de perdas e recuperações de controlo sem aquela tensão.
Só depois de o problema se dissolver é que me apercebi da provável causa daquela tensão. Na primeira audição em que tocara na minha adolescência, a tremura incontrolável das minhas pernas resolvera-se contraindo-as fortemente. Na realidade, a audição não correu nada bem, mas pelo menos consegui evitar passar pela vergonha de todos me verem a tremer como varas verdes. A tremura das pernas deixou de ser um problema, mas aquela forte contração das pernas tornou-se habitual e permaneceu como um ingrediente involuntário da minha preparação para enfrentar o público muito depois de ter aprendido a dominar o medo do palco.
Esta questão levou-me a refletir sobre os padrões de tensão excessiva ou mesmo desnecessária que se associam indelevelmente à abordagem de dificuldades técnico-musicais. Em primeiro lugar pareceu-me urgente dissociar a utilização que fazemos da palavra tensão musical e tensão muscular. Em música fala-se de tensão harmónica, rítmica, emocional que facilmente, talvez insidiosamente, se traduz em tensão muscular. A minha experiência com a tensão nos membros inferiores, é extensível a muitas outros grupos musculares: tensão no maxilar, franzir o sobrolho, contrair a língua, o pescoço, os ombros, os braços, os dedos, os abdominais... em todas essas regiões se manifestam tensões involuntárias de que geralmente só nos apercebemos quando elas são causa de dores que afetam a nossa prestação. Falamos então em tensão excessiva que procuramos muitas vezes diminuir com pouco sucesso. Raras vezes nos dispomos a inverter os dados e pensar, não quando é que a tensão é excessiva, mas quando é que a tensão é insuficiente, para partirmos desse patamar, e redescobrir o grau de contração ótimo, procurando o mínimo denominador.
O trabalho com estas peças serviu-me de laboratório para abordar estas questões. O facto de ter de desautomatizar técnicas adquiridas, por exemplo em Gesti, ou aprender novas técnicas, por exemplo tocar duas flautas simultaneamente em Ausser Atem, permitiu-me reviver e observar processos de aprendizagem que tinham sido essencialmente intuitivos (e não ponho em questão a eficácia e necessidade desses processos) agora com uma visão e consciência mais apurada. Naturalmente que não deixo de reconhecer a eficácia de uma aprendizagem implícita baseada na repetição e no método de tentativa e erro. Mas estou convencido que um equilíbrio que consista numa alternância entre processos analíticos e racionais e processos em que a aprendizagem é fruto de conjugação e refinamento de fatores cuja verbalização nem sempre é possível, se obtêm resultados de forma mais eficiente. Ou seja, a eficácia de processos intuitivos pode beneficiar de uma análise que permite maior eficiência. Conseguir mais e melhor em menos tempo e com menor dispêndio de energia.
De facto, na resolução de problemas motores, o nosso organismo começa por procurar uma solução eficaz, mesmo que à custa de um excessivo dispêndio de energia, para depois através do refinamento e da prática minimizar esse dispêndio. No entanto, nada nos garante que essa prática nos permita atingir com segurança o patamar mínimo de dispêndio de energia. Alguns que o conseguem, são apresentados como modelos, cujo sucesso muitas vezes é atribuído apenas – erradamente na minha opinião – a uma indefinível aptidão natural. Ilude-se o facto de que provavelmente essa aptidão não é mais do que uma busca, nuns mais consciente do que noutros, por esse equilíbrio otimizado entre tensão e distensão muscular, para conseguir “mais com menos”. Naturalmente que estas questões preocupam todos os músicos e pedagogos há séculos, mas nem sempre é fácil conjugar a obtenção de objetivos de médio e longo prazo com a utilização dos meios mais adequados, quando isso implica muitas vezes uma regressão temporária ou um por vezes frustrante processo de reeducação neuro-motora.
Falo em reeducação neuro-motora para tornar claro que pensamento e ação são indissociáveis. Se os automatismos prescindem de um controlo voluntário consciente, isso não significa que eles não dependam da atividade neurológica, nem que periodicamente não devam ser reciclados e revistos através da sua iluminação por uma atenção focada e consciente, mesmo quando isso implica uma momentânea regressão à fase cognitiva da aprendizagem motora, com movimentos lentos e eventualmente inconsistentes, conscientemente controlados. Algo que deve ser mais do que simplesmente tocar devagar intencionalmente (o que obviamente é sempre uma boa estratégia). Trata-se de através de uma atividade cognitiva acrescida, sermos forçados a inevitavelmente diminuir a velocidade. Muitas vezes estudar devagar algo que já somos capazes de tocar depressa, é feito com uma atenção e concentração menos focada. Ao simplificar a tarefa, como necessitamos de menos recursos atencionais, “relaxamos” mentalmente. No entanto, pelo contrário, trata-se de tornar a tarefa de tocar devagar em algo tão ou mais complexo do que tocar depressa. Algo que provavelmente vai provocar maior fadiga mental do que física. Neste contexto é oportuno citar um estudo sobre a metodologia de treino de José Mourinho, que consciente de que a fadiga mental em futebolistas de alta competição surge geralmente antes da fadiga física, insiste em não fazer treinos mais longos do que a duração do jogo, mesmo que os atletas estejam em condições físicas, pois naquele tipo de treino é essencial trabalhar questões táticas que exigem uma concentração máxima [8]. A resistência física pode ser trabalhada no ginásio ou em exercícios específicos, diz ele.

 

Fragmente de Makoto Shinohara

 

Em 1976, num curso de Verão que frequentei em Inglaterra, numa sala onde estavam expostas para venda mais partituras do que eu alguma vez tinha visto, folheei algumas peças contemporâneas para flauta de bisel. Na altura já tocara algumas obras do século XX na flauta transversal e descobrira pela primeira vez que também havia repertório para a flauta de bisel que eu conhecia apenas como um instrumento para tocar "Música Antiga". Passei os olhos pelas primeiras páginas de várias partituras e detive-me em duas que me despertaram a curiosidade: Sweet de Louis Andriesen e Fragmente de Makoto Shinohara. Na minha ingenuidade adolescente comentei com um colega que a peça do compositor japonês devia ser bem mais fácil, pois apenas tinha colcheias, e obrigado a gerir os meus parcos recursos comprei-a deixando a outra no escaparate com alguma tristeza. Mais tarde, na posse de ambas, toquei-as durante os meus estudos no Conservatório de Amesterdão.
Fragmente de Makoto Shinohara é uma obra aberta que explora as sonoridades do instrumento, sendo notória a influência do shakuhachi, a flauta de bambu japonesa.
A partitura apresenta-nos 14 fragmentos, deixando ao critério do flautista a escolha da ordem da sua execução. O compositor apenas indica os fragmentos que não podem ser tocados no início ou no final.
O carácter de cada fragmento pode ser interpretado de formas muito diferentes. Embora condicionado pela escrita, a ausência de certo tipo de indicações (dinâmicas, fraseio, ritmo) dá ampla liberdade ao intérprete para imprimir um cunho muito pessoal à execução. Ao contrário de outras peças em que algumas indicações dinâmicas são manifestamente irrealizáveis, nesta peça a dinâmica natural e possível do instrumento pode e deve ser exploradas.
O compositor pede que a peça seja tocada sem vibrato. Na nossa opinião essa indicação deve ser contextualizada. Numa época em que o ideal sonoro de um vibrato contínuo era dominante, pedir para eliminar o vibrato era uma forma de procurar uma sonoridade diferente, um som menos tenso.
A geração de músicos que aderiram ao ideal de uma interpretação dita “historicamente informada” reagiu contra as interpretações de música barroca em voga, supostamente de inspiração romântica. No entanto, como demonstra Bruce Haynes, a primeira reação às interpretações românticas, na medida em que eram uma reação pela negativa aos “excessos” românticos, é em parte consequência de um regresso a uma leitura precisa do texto musical. Mais do que um interesse pelas “regras” da interpretação barroca, devemos falar de uma atitude modernista, na linha de Stravinsky que apelava a que os músicos nada acrescentassem de seu ao guião que o compositor fornecia ao intérprete, a partitura em que tudo estaria indicado.
Essa conceção é completamente estranha à atitude de um músico perante o texto no período barroco. Numerosos parâmetros da execução eram definidos por convenções tacitamente aceites. Hoje em dia é difícil imaginarmos como é que no século XVII as diferenças entre o estilo francês e italiano eram tão marcadas que um músico italiano não ousaria tocar repertório francês e vice-versa.
A transição de um estilo de execução baseado na prática corrente, para uma nova forma de interpretar pode ser apreciada nas gravações de Frans Brüggen. Numa rara gravação do início dos anos sessenta, Brüggen toca com um vibrato contínuo, intenso, regular e de grande amplitude [9]. Algo que seria impensável hoje em dia. As gravações posteriores mostram uma sonoridade radicalmente diferente que implicam uma conceção diametralmente oposta da sonoridade do instrumento.
A partitura da peça de Shinohara, apesar de exigente, não está sobrecarregada com indicações performativas, ao contrário da de Berio.

 

Gesti de Luciano Berio

 

Quando Frans Brüggen pediu a Luciano Berio uma peça para flauta de bisel solo, o compositor que não tinha tido nenhum contacto com o instrumento, compôs uma peça que coloca um desafio inaudito ao flautista. Gesti é uma obra baseada na desconstrução da técnica básica do instrumento, separando deliberadamente a ação dos dedos da emissão (sopro, articulação e voz) do executante. A peça está dividida em três secções ao longo das quais essa coordenação é progressivamente reconstruída. Na primeira secção, o intérprete deve escolher um padrão de movimento dos dedos que é repetido o mais rapidamente possível, enquanto que a articulação e emissão das notas é notada de forma independente. A coincidência entre dedilhações e articulação é por isso aleatória. São indicados o registo, dois tipos de flatterzunge (de língua e de garganta), sons vocais e sons instrumentais coloridos pela voz. O ritmo é indicado espacialmente e a dinâmica é dada por uma escala numérica de 1 a 7.
No Prefácio da partitura, o carácter aleatório do resultado é frisado: "Because of the frequent 'contradictions' between the tension of the lips and the finger positions, and because of the speed of changing patterns, the resulting sound is unpredictable, and very often overblown harmonics will be heard. Sometimes the instrument will produce no sound at all." 50 anos depois da composição, a edição disponível mantém o conteúdo do prefácio inalterado. Nesse prefácio subentende-se que Berio não estava bem ciente das características do instrumento. Na notação para a "boca", a posição das notas numa pauta de 2 linhas indicaria a tensão dos lábios para produzir sons no registo agudo, médio e grave. Naturalmente que só na flauta transversal é que os lábios (juntamente ou independentemente da pressão do sopro) têm um papel na determinação do registo da nota emitida para cada dedilhação. Na flauta de bisel, só a pressão do sopro ou a intensidade do ataque, determinada pela tensão da língua podem alterar o registo da nota emitida para uma dada dedilhação. Mas como o instrumento tem um ataque extremamente imediato é possível com uma grande variedade de intensidades das sílabas articulatórias produzir sons de registos diferentes.

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Na segunda secção, os dedos devem mover-se deslizando em glissando entre dedilhações de notas determinadas, enquanto o intérprete continua a seguir um plano de articulação e emissão independente:

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A coordenação entre articulação, a emissão e a dedilhação intimamente associadas na execução tradicional é assim destruída, criando "contradições" frequentes entre as dedilhações e a articulação e emissão tornando o resultado sonoro imprevisível, e a rapidez da mudança das dedilhações, seja na primeira secção com o padrão repetitivo, seja na segunda com os glissandos, provocam a frequente produção de harmónicos, multifónicos e ruídos de ataque por vezes sem altura definida.
Finalmente, na terceira secção, dedos, articulação e emissão recuperam a sua coordenação, e a notação passa a indicar claramente o resultado rítmico e sonoro pretendido.
Para mim, a imagem que melhor reflete o que se passa na execução da peça é a de um flautista que após um acidente vascular cerebral perdeu a capacidade de coordenação entre dedos e língua e faz um programa de terapia de recuperação. Os dedos movem-se descontroladamente na primeira secção, acalmam na segunda, deslizando suavemente pelos orifícios e, finalmente na última, o flautista está de novo em controle das suas faculdades.
Em termos de preparação técnica, a principal dificuldade da peça está na inibição dos hábitos do flautista, que deve seguir dois planos de execução totalmente independentes. No fundo, são anos de trabalho de coordenação que devem ser "esquecidos", obrigando a um esforço de independência no controlo de parâmetros que habitualmente estão intimamente associados.
Apesar de a partitura descrever com precisão os parâmetros isolados, o intérprete não tem um controlo preciso sobre o resultado da conjugação desses parâmetros. O flautista tem assim a permissão, ou mesmo a obrigação, pois essa parece ser a intenção do compositor, de renunciar a controlar o resultado sonoro, aceitando aquilo que o instrumento produzir. Essa renúncia é, para mim, talvez a maior dificuldade da obra. Por um lado, todos os automatismos criados ao longo de anos de prática do instrumento visam permitir um controlo sobre o resultado e torna-se difícil a princípio renunciar aos reflexos para procurar coordenar o movimento dos dedos e da língua.
O método habitual para aprender a peça é começar por declamar a articulação, um pouco como na rítmica indiana do konakol, e depois conjugá-la com os movimentos dos dedos. O resultado sonoro inesperado cria no início frequentes conflitos e bloqueios nos movimentos da língua e dos dedos. Optei por dividir o trabalho em três fases: a recitação da articulação e dos sons vocais; a recitação simultânea com a dedilhação, sem colocar a flauta na boca e finalmente uma execução normal. Comparando o recitar movendo os dedos na flauta apoiada na coxa com a execução normal, tornaram-se aparentes as mudanças do tónus muscular dos braços e dedos provocadas pela intensificação dinâmica ou rítmica das passagens. Embora este fenómeno não fosse novidade para mim e sempre o procurara evitar, nunca me apercebera com tanta clareza dele. A peça tornou-se assim um laboratório para trabalhar a dissociação dessas sincinesias que julgava estarem resolvidas.
A mera recitação da articulação não me permitiu logo conceber e interiorizar um fraseio claro, com um sentido de direção. Para que cada grupo de notas ornamentais fosse decorado com uma direção e intenção claras, um sentido de fraseio convicto, procurei atribuir-lhe notas específicas. Transformei assim cada frase numa sequência de fragmentos de escalas com o número correspondente de notas. Consegui assim, não só decorar mais facilmente, mas também tornar mais claros os sentidos ascendente e descendente dos grupos. Uma vez que as dinâmicas indicadas não permitem controlar o registo, só diferentes intensidades do movimento da língua o permitem. Dessa forma, foi necessário desenvolver uma técnica de controlo da dinâmica dos ataques totalmente independente da intensidade do sopro. Ou seja, dissociar a dinâmica consequência da pressão do sopro, da energia de cada consoante articulatória algo que sendo inicialmente bastante difícil, acaba por trazer enormes benefícios para a técnica tradicional, pois obriga a uma independência entre os dois parâmetros. Uma intensificação dos ataques sem a correspondente e habitual intensificação da pressão do sopro é uma experiência que contraria os hábitos da técnica tradicional.

 

Ausser Atem de Moritz Eggert

 

A peça Ausser Atem (Sem Fôlego) com uma duração de cerca de 7 minutos, exige que o flautista aprenda novas coordenações que lhe permitam tocar duas flautas e cantar simultaneamente. O flautista toca três instrumentos diferentes: um soprano em Dó e dois altos, em Fá e em Sol.
A peça, tal como o título indica, coloca problemas de natureza respiratória: não só a duração de certas passagens a executar numa só respiração é por vezes considerável, como o consumo de ar ao tocar duas flautas é muito superior, pondo em causa hábitos de gestão do ar adquiridos na execução tradicional. A velocidade de certas passagens está por vezes próxima do limite da própria capacidade de perceção auditiva, exigindo elevado grau de automatização dos movimentos dos dedos. Por tudo isso, as exigências técnicas e respiratórias da peça colocaram-me várias vezes em situações em que a Técnica Alexander me foi extremamente útil.
Os problemas respiratórios revelaram quatro aspetos diferentes, mas claramente inter-relacionados: capacidade pulmonar exigida por certas passagens, hiperventilação provocada por uma excessiva oxigenação, apneias provocadas por dificuldades rítmicas ou de coordenação e alterações posturais que comprometiam essa capacidade (que referiremos mais adiante).
Uma observação cuidadosa permitiu constatar a necessidade de uma análise sistémica dos problemas: a falta de ar ou o excesso de ar provocavam frequentemente um claro aumento da tensão e agitação no movimento dos dedos. Da mesma forma a perceção do tempo é distorcida pela situação física em que o flautista se encontra em cada momento, levando-o a inconscientemente alterar o tempo em função das suas necessidades de ar através de acelerandos nas frases mais longas. Simultaneamente as diferenças dinâmicas são acompanhadas de variações na tensão dos dedos e da tonicidade geral de toda a musculatura postural. A peça é extremamente enérgica: a energia que transmite ao ouvinte tende a levar o executante a implicitamente investir uma energia e esforço coincidentes com a impressão que a peça causa. Esta atitude constitui uma perigosa armadilha que pode comprometer a segurança e controlo de uma execução pública. Exige sangue frio e uma clara consciência de que muitos dos efeitos mais impressionantes requerem muitas vezes um esforço surpreendentemente inferior ao julgado necessário ou desejável. Todos estes problemas devem ser abordados através de uma dissociação entre vários fatores que frequentemente estão inconscientemente relacionados: maior tensão musical não implica maior tensão muscular; crescendo dinâmico ou dificuldade técnica não implicam maior tensão ou brusquidão no movimento dos dedos; contrastes abruptos e inspirações bruscas e forçadas tendem a ser antecedidas ou seguidas de apneias que criam tensão muscular.
Este é, aliás, um problema transversal às três peças gravadas. Constatei com frequência a tendência para enfatizar o efeito de surpresa inerente a pausas inesperadas, seguidas de contrastes bruscos, com apneias. A imobilidade com que conscientemente ou não, se procura criar um efeito de surpresa ou expectativa, é muitas vezes acompanhada com uma retenção respiratória e os ataques bruscos e inesperados (para o ouvinte) são muitas vezes preparados com uma inspiração súbita de última hora. Esse hábito, é certamente reforçado pela prática recorrente de usar a inspiração que antecede um ataque como uma anacruse. Num contexto de música de câmara, a utilidade ou necessidade dessa inspiração enfática pode parecer inegável. No entanto, frequentemente uma entrada é dada por um gesto simultâneo com a inspiração. Os outros músicos guiam-se, seja pelo gesto, seja pela inspiração, mas um desses sinais acaba por ser redundante. Na realidade, o objetivo é surpreender o ouvinte e não colocar o executante no quase sempre inevitável estado de ansiedade e tensão que uma inspiração brusca provoca, sobretudo se observarmos a forma como muitas vezes se abre a boca para inspirar, não deixando cair o maxilar, mas retraindo a cabeça, puxando-a para cima e para trás. Se sentados a uma mesa, com os cotovelos apoiados, colocarmos o indicador de uma mão na ponta do nariz e apoiarmos o queixo no punho fechado da outra mão, verificamos que para abrir a boca, a única hipótese é elevar o maxilar superior, rodando o crânio para trás. O movimento do maxilar inferior será impedido pelo punho de uma mão e facilmente verificamos que se perde o contacto entre a ponta do nariz e o indicador da outra mão. O movimento do crânio é resultado da contração dos músculos do pescoço e em casos extremos sentiremos a nuca aproximar-se da linha dos ombros. Este movimento despoleta quase sempre uma acentuação da curvatura dorsal, que diminuirá significativamente a abertura das costelas. Não é difícil concluir, que este movimento não contribui para aumentar o volume da caixa torácica. Na realidade, ele é a primeira manifestação muscular da reação ao perigo, o reflexo de luta ou fuga.
Se pelo contrário, apertarmos levemente a ponta do queixo entre o polegar e o indicador e procurarmos abrir a boca sem que o nariz se mova, talvez puxando levemente o maxilar para baixo, verificamos que a tensão na nuca que sentimos na primeira experiência não ocorre.
Na prática, em situações de maior tensão a abertura da boca é resultado dos dois movimentos combinados em graus muito variáveis. Tomar consciência desta forma de inspirar e numa segunda fase inibir ou seja, impedir que ela se verifique, vai permitir lidar com a execução da passagem que se segue num estado psico-físico muito mais eficiente.
A coordenação entre as duas flautas levou-me a fazer diferentes experiências de divisão da atenção. Uma conclusão curiosa é que, na realidade, as dificuldades de tocar duas flautas simultaneamente não são maiores do que as dificuldades de tocar apenas uma. Uma parte do esforço despendido foi em inibir o recrutamento de programas motores já automatizados, ou seja, se nunca tivesse tocado flauta antes, aprender a tocar duas flautas simultaneamente teria um grau de dificuldade comparável a aprender a tocar uma só. Nesse sentido, o “não-fazer” revela-se fundamental; não recorrer aos hábitos adquiridos que interferem com aqueles que pretendo adquirir. Esse exercício foi mais difícil do que a aquisição da coordenação em si. Ou, para ser mais preciso, a aquisição da nova coordenação foi mais lenta devido ao tempo perdido com o recrutamento de programas motores indesejáveis. Não foi fácil convencer-me a ser um principiante durante algum tempo.
Ao longo da preparação da peça verifiquei várias opções estratégicas menos eficientes ou adequadas que revelam sobretudo uma resistência a um uso mais sistemático da alternância e prática aleatória:
1. um trabalho segmentado só tardiamente complementado com um trabalho de ligação entre as secções em que técnicas diferentes tinham de ser utilizadas imediatamente, sem preparação. Nesse sentido, a coreografia da troca de instrumentos beneficiou de um trabalho mental, seguido da observação da economia de movimentos no gesto. De facto, numa execução, a precipitação na mudança de instrumento raramente é alvo de um estudo cuidadoso. Se se trabalham sistematicamente padrões de movimentos digitais, não deixa de ser necessário trabalhar gestos que aparentemente não são complicados, mas cuja precisão pode comprometer a execução da passagem seguinte, ou pelo menos colocar o executante num estado de ansiedade desnecessário.
2. um trabalho analítico de pormenor não complementado com decisões de natureza expressiva que permitissem integrar o pormenor num todo com um significado claro. Esta questão será exemplificada mais adiante.
Por último, o processo de descrição e explicitação dos problemas que a peça coloca e das estratégias seguidas para os resolver foi um elemento essencial na resolução dos problemas. A verbalização ajuda a resolver problemas, mas o processo não é linear nem isento de inconvenientes. Passagens já dominadas, perderam a fluência em resultado de experiências para procurar diferentes formas de controlo ou focagem da atenção. Nesse sentido,, situações houve em que um excessivo recurso ao conhecimento explícito gerou problemas. Na maior parte dos casos, no entanto, uma vez transcendidos esses problemas foi possível aceder a níveis superiores de controlo automático.

 

Descrição da Peça


Mais do que uma análise musical da peça, pretendo fazer uma análise da execução. Com efeito há secções que musicalmente são aparentadas, mas exigem uma técnica de execução completamente diferente: a melodia lenta pontuada por pausas, que surge várias vezes ao longo da peça é umas vezes cantada e outras tocada, e o acompanhamento é feito por ostinatos totalmente diferentes que criam texturas diferentes e que exigem coordenações entre as duas flautas que colocam problemas diversos ao nível da execução.
A peça tem um elemento melódico estático e um elemento rítmico extremamente ativo. A virtuosidade envolvida e o insólito do flautista tocar duas flautas simultaneamente tendem a obscurecer a importância da simples melodia que aparece três vezes na sua forma básica, duas vezes modificada e numa forma exploratória, como uma espécie de embrião na primeira parte. A perceção do carácter central desse elemento melódico é prejudicada, do ponto de vista do intérprete, pelo tempo e atenção necessários para dominar as dificuldades e coordenações envolvidas. Muitos dos efeitos mais invulgares e complexos são acompanhamento para a melodia, embora por vezes se autonomizem (o movimento contínuo da escala pentatónica, quando é apresentado em versão diafónica, com uma transposição da escala).
A primeira parte da peça é constituída pela alternância entre um movimento perpétuo em tercinas de semicolcheias a executar numa só respiração e o embrião de uma melodia de âmbito restrito à terceira maior Lá-Dó#. O âmbito das notas utilizadas no movimento perpétuo é de apenas uma nona (Dó 4-Ré 5) e a secção melódica (A) inicia-se com a nota si, uma nota sempre ausente nas três apresentações do movimento perpétuo. Esta melodia estridente tocada no registo agudo da flauta, parece procurar desesperadamente atingir um Ré agudo, sem nunca o conseguir. Das três vezes queda-se pelo Dó#, mas o Ré como centro tonal é sempre reiterado pelo movimento perpétuo seguinte. De facto, o movimento perpétuo é sempre construído com base numa escala Ré-Mi-Fá#-Sol-Lá-Dó-Dó#-Ré. É desta escala que é extraído o padrão pentatónico sobre o qual é construída a segunda parte (transposição da escala original a partir do sol: essa transposição é feita automaticamente ao tocar as mesmas dedilhações nas flautas alto).
O âmbito melódico destas secções é muito pequeno: um 3ª Maior, de Lá a Dó #. Os intervalos de 2ª menor são geralmente articulados através de um efeito que produz uma nota ornamental mais grave de altura pouco definida. É como se a nota aguda falhasse momentaneamente, no momento do ataque. O efeito segundo as indicações da partitura é produzido tapando parcialmente a abertura da extremidade do instrumento. Mas o efeito ganha clareza se a emissão da nota de passagem for auxiliada com um movimento da glote que diminui brusca mas momentaneamente a pressão do sopro no instante em que o orifício terminal do tubo do instrumento está a ser obstruído pela perna do executante.

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A melodia cantada pela primeira vez na secção F acompanhada pelo movimento perpétuo é constituída por 6 segundas, três ascendentes e três descendentes. Si-Dó; Si-Lá; Sol-Lá; Sol-Fá#; Mi-Fá#; Mi-Ré. 

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Uma ponte executada apenas com a mão esquerda, permite uma rápida mudança para a flauta contralto, que é agarrada com a mão direita. Uma aparente reexposição do material inicial é rapidamente posta de parte, para apresentar uma versão expandida da melodia tocada na flauta soprano (H), acompanhada na flauta alto tocando com a mão esquerda um movimento contínuo em torno da escala pentatónica (Dó-Ré-Fá-Fá#-Sol). Ao tocar uma flauta com cada mão, o número de notas disponíveis é naturalmente limitado, pelo que parte da peça é organizada à volta daquelas cinco notas. Estas notas podem ser tocadas numa flauta alto em fá, unicamente com a mão mais próxima da embocadura da flauta, a esquerda. A utilização de flautas com afinações diferentes permite utilizar duas transposições desta escala pentatónica: uma 2ª acima numa flauta em Sol e uma 5ª acima numa flauta soprano em Dó.

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Na mesma forma, a melodia volta a ser cantada nas secções Q e R, com acompanhamentos diversos. Na letra Q: uma nota pedal de Mi, ritmicamente reiterada e ornamentada com duas appoggiaturas:

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Em R o acompanhamento muda para um movimento paralelo alternado entre as duas flautas até que as duas flautas se encontram num uníssono em notas repetidas:

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Uma nova mudança de flauta vai propiciar o clímax da peça: a flauta em Sol e a soprano em Dó, pela primeira vez juntas, tocam fragmentos pentatónicos em quartas paralelas enquanto a voz consegue finalmente ganhar lanço para ascender ao almejado Ré agudo.

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A peça termina com o movimento perpétuo inicial, agora tocado na flauta em Sol e em diminuendo (U) e uma explosão final num ostinato pontuado por assobios rítmicos produzidos pela palma da mão colocada sobre a saída do ar junto ao bisel.

 

Alguns problemas em Ausser Atem

 

Tocar duas flautas simultaneamente coloca três problemas. Como segurar os instrumentos, como dividir a atenção para coordenar as duas mãos e como gerir a maior quantidade de ar que vai ser consumida por dois instrumentos. Como veremos uma abordagem específica de cada problema peca por não considerar que eles, por vezes de forma inesperada, interagem e não podem ser desligados de um padrão geral da coordenação do instrumentista. Desligar a resolução destes problemas das questões musicais e interpretativas revelou-se um erro que me fez desperdiçar tempo e energia.
Uma vez que o polegar direito é habitualmente usado como ponto de apoio, uma flauta segura apenas por uma mão perde o ponto de apoio quando o polegar que tapa o orifício nas costas do instrumento é levantado (para tocar o Fá# e o Sol numa flauta alto em Fá). Uma solução é colocar o dedo mínimo que não é utilizado para tapar um orifício, sob o instrumento. Esta solução tem o inconveniente de, ao prender aquele dedo, dificultar o movimento do dedo anelar, criando uma tensão considerável na mão. Noutras peças do reportório da flauta de bisel que requerem o uso de duas flautas em simultâneo o problema não é tão agudo. Seja porque a nota Sol não é utilizada, podendo o polegar permanecer como ponto de apoio do instrumento (Ende de Louis Andriessen), seja porque as flautas usadas são flautas soprano e portanto relativamente leves (Black Intention de Maki Ishi). Nesta última peça são usadas duas flautas com uma diferença de afinação de meio tom que tocam em movimento paralelo, ou seja, as duas mãos fazem movimentos idênticos, o que é consideravelmente mais simples do que tocar as duas flautas em movimento independente. Nesse sentido, a peça de Andriessen sendo minimal e aparentemente mais simples coloca problemas de coordenação consideravelmente mais complexos.
Optamos assim, na fase inicial de preparação da peça, por apoiar as flautas nas pernas, o que implicava tocar sentado. A considerável flexão do tronco necessária não era particularmente confortável. Para chegar com as flautas às coxas podemos fletir o tronco na sua totalidade a partir das ancas, ou curvar a coluna dorsal, baixando a caixa torácica e o esterno, ou uma combinação das duas. Um encurvamento da coluna dorsal diminui consideravelmente a capacidade da caixa torácica. Verifiquei que nessa posição a minha capacidade respiratória era consideravelmente menor. Um dos procedimentos da Técnica Alexander, a chamada posição do macaco, pretende entre outras coisas, compreender o tronco como uma unidade que flete nas ancas, evitando encurvamento da coluna dorsal. Apesar de consciente desta questão, não encontrei forma de me curvar sobre as coxas, sem recorrer àquele encurvamento da coluna dorsal, que mesmo minimizado diminuía a minha capacidade. Optei, por isso, por construir um suporte onde apoiasse as flautas de forma a poder manter a coluna o mais ereta possível.
Esse suporte revelou-se uma importante fonte de feedbacksobre a qualidade dos movimentos dos dedos. Uma característica que contribui para a eficiência de um movimento é a sua fluidez. Uma forma de o conseguir é minimizar uma grandeza designada por jerk, que pode ser traduzida por brusquidão. Essa grandeza representa a magnitude da variação da aceleração. Num gráfico que represente a aceleração em função do tempo, a uma maior inclinação da curva corresponde uma maior brusquidão do movimento (Rosenbaum, 1991: 7). A minimização desta variável depende da redução da amplitude do movimento executado promovendo a eficiência, pois quando a brusquidão é elevada, as forças geradas para o executar têm de ser maiores. Isto implica que a força de impacto dos dedos no instrumento se reduza substancialmente. A pouca solidez do tripé que sustentava o suporte amplificava, através das suas oscilações o excesso de energia do impacto dos dedos no instrumento. A focagem da atenção na oscilação do suporte, revelou-se assim um auxiliar eficaz na modificação da qualidade do movimento. Não surpreendentemente, constatei que era a mão direita, aquela que fazia movimentos menos automatizados, a que provocava mais oscilações.
Os movimentos perpétuos da primeira parte da peça exigem uma grande distensão dos dedos. Depois de devidamente automatizados certos problemas mecânicos tornam-se salientes. Movimentos rápidos de elevação de um dedo podem resultar apenas em consequência do ressalto que se segue ao seu abaixamento, desde que a tensão do dedo seja adequada. O suporte, foi também aqui um auxiliar precioso para procurar essa qualidade de movimento. O movimento dos dedos necessário não é mais rápido do que quando silenciosamente tamborilamos sobre uma mesa. No entanto, qualquer descontrolo momentâneo despoleta um acréscimo de tensão, que acaba por impedir esse ressalto. Começar por praticar lentamente e incrementar a velocidade progressivamente é a estratégia mais comum usada na prática instrumental. No entanto, a partir de um certo patamar os progressos tornam-se bastante lentos e aquela tendência para aumentar a tensão nos dedos manifesta-se insidiosamente. Optei por tocar a melodia formada pelas primeiras notas de cada tercina. Dessa forma tornou-se mais fácil perceber as inflexões agógicas e introduzi-las depois numa execução normal, considerando as outras notas como ornamentos de uma melodia que se tornara clara. Apercebi-me como conceber certos grupos de notas como mordentes subitamente tornava a sua execução muito mais fácil. Tratou-se de uma subtil mudança na conceção do movimento que gerou melhorias imediatas. No entanto esse trabalho implicou decorar cuidadosamente a linha formada pelas primeiras notas de cada tercina, linha que até então não estava claramente representada na minha mente.
Um aspeto interessante de muitos tipos de movimentos bimanuais é que as mãos parecem estar ligadas uma à outra, tornando fácil realizar movimentos simultâneos das mãos se o padrão de movimento for o mesmo para ambas as mãos e ainda mais se os padrões para as duas mãos forem imagens simétricas. Podemos verificar este fenómeno escrevendo com ambas as mãos ao mesmo tempo. Se tentarmos esta experiência veremos que é extremamente fácil executar o mesmo padrão com a mão esquerda e direita. Nesse sentido, a secção T, em que duas flautas executam padrões de 3 a 7 notas da escala pentatónica à distância de 4º em movimento paralelo não colocam as dificuldades de coordenação que aparentam. Na verdade, pude constatar a facilidade que o nosso sistema motor tem para executar eficazmente o mesmo programa motor simultaneamente com os dois membros. Ao tocar com a mão direita, o polegar é o dedo mais difícil de mover, pois habitualmente apenas é usado para suportar o peso do instrumento. Está por isso habituado a manter uma tensão constante (geralmente excessiva) e a sua agilidade nunca é treinada. A escala pentatónica escolhida pelo compositor obriga a movimentos contrários entre o polegar e o indicador ao passar do Fá ao Fá# (Dó-Dó# na flauta em Dó). Tendo optado por trabalhar de mãos separadas, insistindo em especial na mão direita, verifiquei que as passagens menos fluentes não pareciam sair melhor dessa forma. Com efeito ao juntar as duas mãos alguns problemas de coordenação entre o indicador e o polegar dissolviam-se. A mão direita seguia o movimento da mão esquerda, sendo-me mesmo possível executar as passagens com maior velocidade e clareza com as duas mãos do que apenas com a direita.
Os problemas tornam-se muito mais complexos quando há dois programas motores que competem entre si pela atenção. As secções L e M são, nesse sentido, aquelas que mais trabalho deram. Nestas passagens a flauta da mão direita executa em ostinato a escala pentatónica, em frases de duração variável interrompidas por pausas. Entre a secção L e a M há um compasso de 5/4 preenchido com pausas, durante as quais o executante deve trocar as flautas de mão. Dessa forma o ostinato passa a ser executado numa flauta em Fá passando o ostinato a soar uma 2ª M abaixo. Simultaneamente a flauta da mão esquerda executa um movimento contínuo entre as notas da escala, geralmente começando em movimento paralelo com a outra, para logo divergir criando um contraponto com movimentos muitas vezes contrários.
Tocar duas flautas simultaneamente, exige um esforço de divisão de atenção entre as duas mãos, que no caso de um flautista corresponde a desmontar automatismos criados ao longo de anos de prática. A divisão da atenção é caracterizada pela capacidade de atender simultaneamente a várias tarefas ou mensagens.
A atenção pode ser dividida e deste modo a sua capacidade pode ser usada mais eficazmente através de quatro processos essenciais (Janelle et al, 2004):

  1. Coordenar duas ou mais tarefas de modo a combiná-las numa tarefa unitária mais complexa;
  2. Praticar uma tarefa até atingir um nível de automatismo e então executar adicionalmente outra;
  3. Aprender a executar duas tarefas descobrindo como minimizar a interferência entre elas, em particular focando a atenção nas suas diferenças e /ou;
  4. Encontrar forma de executar as duas tarefas partilhando o tempo e atenção disponível eficazmente entre elas

Na realidade, para tocar flauta é necessário coordenar os dedos de ambas as mãos, só que com o objetivo de produzir um único som. Ou seja, a uma dada configuração dos dedos das duas mãos atribuímos uma determinada nota. Um principiante para tocar uma nota terá de pensar separadamente quais os dedos de cada mão que devem cobrir os orifícios, mas com a prática, a uma configuração de dedos das duas mãos é atribuído um significado (uma determinada nota) e a atividade cognitiva exigida é consideravelmente reduzida.
A prática de um flautista usa o primeiro processo, referido acima, para combinar o uso dos dedos das duas mãos para obter uma única nota, ou seja, a atividade das duas mãos torna-se uma única tarefa, sem dúvida mais complexa, mas que passa a exigir menos recursos cognitivos. No caso presente, produzir dois sons diferentes com cada mão corresponde à desmontagem de uma estrutura cognitiva construída laboriosamente. Como flautista automatizei de tal modo a associação de uma nota a uma dada dedilhação que só numa fase adiantada da preparação da peça me apercebi de que por vezes a configuração de dedos usada nas duas flautas, correspondia à configuração usada para tocar uma determinada nota numa só flauta. Dessa forma em vez de memorizar duas notas e selecionar as correspondentes configurações de dedos, bastava pensar numa única configuração de dedos, atribuindo-lhe um único nome.

As secções L e M não serão as mais difíceis em termos motores, mas são-no em termos cognitivos e de desmontagem de programas motores que são recrutados quase automaticamente enquanto a nova coordenação não se consolida.

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Em primeiro lugar, o facto de a flauta de bisel não ser tratada como instrumento transpositor, leva a que ao tocar duas flautas de afinações diferentes, à mesma configuração de dedos correspondam notas diferentes. Por isso, as cinco primeiras notas de cada flauta na letra M são tocadas nas duas flautas com dedilhações idênticas, mas soam à distância de uma 2ª e estão escritas em sons reais. O trabalho cognitivo envolvido e a confusão criada levaram-me a transpor a flauta em Sol de modo a que os padrões de dedilhações comuns estivessem notadas na mesma altura. Esse primeiro passo facilitou bastante a primeira abordagem da passagem.
Inicialmente procurei usar o segundo processo de dividir a atenção enunciado acima: automatizar o ostinato da mão direita até atingir um nível que me permitisse executar a outra mão. Este processo revelou-se relativamente eficaz, mas não resolveu todos os problemas. O ostinato tendia a descarrilar nas frases mais longas, sobretudo devido à interferência provocada por movimentos paralelos da outra mão seguidos de movimentos contrários. A tendência para as duas mãos acoplarem o seu movimento era por vezes irresistível.
Optei por privilegiar o controlo táctil em detrimento do auditivo, pois o efeito sonoro era difícil de memorizar. Para isso procurei tocar a passagem silenciosamente com as mãos sobre as coxas ou sobre o tampo de uma mesa. No entanto, ao tocar nos instrumentos, o resultado sonoro impedia um controlo com base apenas na proprioceção dos movimentos dos dedos. O feedback auditivo era perturbador. Segui então um processo de dividir a atenção entre as duas mãos usando modalidades sensoriais diferentes. Visualmente lia a parte a ser executada com a mão esquerda, enquanto que mentalmente repetia as notas do ostinato da outra.
Quando estas secções começavam a ser executadas de forma mais ou menos fluente, tomei uma decisão interpretativa que provocou uma regressão. Optei realçar a métrica com acentuações de quatro em quatro semicolcheias que tendia a seguir uma acentuação quinária do ostinato constituído por cinco notas. O padrão repetido termina num sol e começa num dó. Assim, a ligação entre cada repetição do ostinato coincide com um intervalo de 5ª descendente (Sol-Dó), feito por meio do abaixamento simultâneo de três dedos. Se a tendência para baixar o dedo ativamente batendo contra a flauta não for inibida, a probabilidade de a nota produzida em resultado desse movimento ser acentuada são consideráveis. Por outro lado, baixar ativamente um dedo, implicando uma maior ativação dos flexores, dificulta a imediata distensão do músculo para que na posterior elevação do dedo o flexor não ofereça resistência ao extensor. Deste modo, em passagens rápidas, a um abaixamento do dedo dessa forma, segue-se uma nota com tendência a ser ligeiramente mais longa (acentuação agógica) ou uma ativação maior do que a necessária do extensor que vai trabalhar em co-contração com o flexor ainda não totalmente distendido, gerando um eventual movimento mais brusco do dedo. Independentemente do contorno melódico, há uma agógica ou métrica própria do movimento dos dedos, que pode ser aceite ou contrariada, conforme o gosto ou as capacidades técnicas do flautista. Neste caso concreto, as cinco notas do ostinato podem ser claramente agrupadas em 3+2, pois as três primeiras são produzidas elevando sucessivamente apenas um dedo (Dó-Ré-Fá), enquanto o cromatismo é feito pelo movimento contrário de dois dedos (o polegar e o indicador). Devo dizer que nas primeiras fases de estudo da peça, as minhas possibilidades técnicas na execução do ostinato com a mão direita eram reduzidas: com efeito, não só a brusquidão, como a tensão no movimento dos dedos eram consideráveis, pois como já referi o polegar direito é um dedo que nunca é utilizado a não ser como suporte do instrumento. Como já referi, era fácil constatá-lo pelo abanar do suporte onde apoiava as flautas quando tocava. A agitação provocada pela mão direita era claramente superior à da esquerda, revelando a menor perícia com que realizava os movimentos, apesar de serem um padrão repetitivo, mais fácil de executar do que o da outra mão. A contra-melodia executada com a outra mão, apesar de as notas estarem agrupadas quatro a quatro, seguia espontaneamente a agógica do ostinato, mais não fosse porque a mão esquerda era mais maleável, por estar a movimentar-se da forma habitual.
Seguir a agógica implícita na métrica da mão esquerda, implicava ser capaz de tocar o ostinato de cinco maneiras diferentes, começando em cada uma das suas notas.

Picture14Cada grupo, para além de exigir um processamento cognitivo diferente, implica subtis diferenças agógicas que implicam uma adaptação do movimento dos dedos. Para tornar todo o efeito mais claro, optei por articular suavemente de quatro em quatro. O efeito final resulta num recorte da frase muito mais acentuado e numa melhor perceção das variações no movimento melódico.
Se, por um lado, foi necessário praticar novamente e de forma exaustiva toda a passagem, não só o domínio técnico se tornou muito mais consistente, como a memorização se tornou mais fácil.
Foi nesta fase que apliquei consistentemente uma estratégia que, embora já tivesse utilizado, não explorara de forma tão sistemática. A ideia surgiu da leitura de um livro sobre prática pianística (S. Bernstein, 1981). Para conseguir um completo domínio da fuga da Sonata opus 110 de Beethoven, uma obra do reportório de difícil memorização, Seymour Bernstein descreve um método elaborado por um aluno, que consistia em cinco passos:

  1. Memorizar as mãos separadamente;
  2. Tocar uma mão no piano e a outra no regaço;
  3. Repetir o procedimento trocando as mãos;
  4. Executar os movimentos dos dedos das duas mãos no regaço;
  5. Como um teste final, imaginar a passagem com os olhos fechados.

Deste modo, a memoria cinestésica fornece um sistema de segurança adicional reduzindo o receio de falhas de memória. A impressão de segurança sentida pelo aluno é por ele descrita com uma linguagem que denota um estado de fluxo:
“Senti como se tivesse atingido um estado transcendental, como se estivesse a ser tocado pela fuga.” [10]
Este procedimento aqui usado para ajudar a memorização permitiu-me clarificar a métrica de cada uma das linhas enquanto tinha a sensação do movimento dos dedos a fazer com a outra flauta. No fundo é uma manipulação da informação de retorno. Eliminar o feedback auditivo para nos concentrarmos na proprioceção do movimento é aqui combinada com uma audição independente de uma das linhas melódicas. A sobrecarga da atenção é diminuída, pois o resultado sonoro de uma das vozes é eliminado, mas podemos confrontar a execução da melodia com as sensações da execução da outra. Diminuindo as exigências de coordenação, pois qualquer descoordenação entre as duas mãos é apenas sentida e não ouvida, pude detetar quais os pontos em que o balanço de uma das linhas se devia impor à outra e quais as adaptações agógicas a fazer. Trabalhando regularmente desta forma, pude periodicamente rever ou melhorar aspetos que praticando com as mãos separadas, não se manifestam e que numa execução global se torna difícil atender devido a uma insuficiência de recursos da atenção.
A alternância dos vários modos de execução propostos por este método em pequenos grupos ou frases revelou-se mais eficaz do que a execução da passagem na totalidade. As melhorias foram imediatas e substanciais, quer a nível de coordenação, quer da própria sonoridade. A preocupação em tocar as notas foi relegada para segundo plano, passando a melodia a ser sentida como uma entidade musical e não uma mera habilidade virtuosística. Nuances dinâmicas e agógicas impensáveis anteriormente, tornaram-se acessíveis.
A descrição da sensação do pianista coincide com a minha: pela primeira vez tive a sensação de que ouvia calmamente o resultado como se fosse outra pessoa a tocar. Livre da preocupação de perder o controlo das duas flautas, pois, na realidade, tudo parecia automático, sem que, no entanto, deixasse de sentir a capacidade de alterar o curso dos acontecimentos. Em especial a perceção do tempo mudou (o que é uma das características atribuídas por Csikszentmihaly, 1988 aos estados de fluxo). Nos estados de fluxo, o "eu" funciona perfeitamente, mas não estando consciente de ser ele o ator, pode usar toda a atenção para a tarefa em mãos. Nos níveis de maior exigência, uma pessoa sente uma transcendência do "eu", provocada por um invulgar envolvimento numa atividade muito mais complexa do que as que uma pessoa encontra no dia a dia. O tempo para respirar parecia maior, porque a inspiração era feita como um reflexo, como uma ação associada à extinção da última nota, e não como uma anacruse da nota ou grupo seguinte.
Uma forma de colocar o problema dentro do espírito da Técnica Alexander é que grande parte dos problemas respiratórios encontrados resultaram não tanto da dificuldade da peça em si, mas da minha reação a essas dificuldades. O facto de a peça exigir em alguns momentos a utilização da máxima capacidade respiratória não implica uma alteração da forma como inspiro. Apenas uma cuidadosa gestão da quantidade de ar inspirada em cada momento.
As duas primeiras passagens são tocadas na flauta mais pequena e que, por isso, consome menos ar, mas não deixaram por isso de criar alguns problemas. O compositor pede especificamente que o movimento perpétuo seja tocado numa só respiração. O perigo não é a falta de ar mas a falta de oxigénio necessário para manter o controlo. Uma inspiração profunda não facilita o controlo do ar numa flauta que exige pouca pressão de sopro: no início da frase o apoio é no sentido de não deixar sair o ar com demasiada pressão e os dedos tendem a ficar um pouco mais tensos por um efeito de contágio do esforço dos músculos respiratórios.
A frase mais longa de H, revelou-se um excelente exemplo da importância de gerir as inspirações. A tendência para me precaver, inspirando excessivamente nas frases anteriores, tornou aquela frase problemática. Além disso, enquanto que a maior parte das frases da secção está separada por pausas de colcheia, esta em concreto é antecedida de uma pausa de semicolcheia. Um respeito absoluto pela duração da pausa não permite uma inspiração completa sendo a solução mais habitual e possível para este tipo de situações, precipitar um pouco as notas que antecedem a respiração. Mas o principal problema é que depois de ter aproveitado as pausas das frases anteriores para inspirar (impensadamente) ar que não era totalmente consumido, chegava àquele ponto não só com os pulmões ainda relativamente cheios, como já com dificuldades respiratórias por excesso de dióxido de carbono no sangue. Um caso flagrante de má gestão do ar em que a sensação de falta de ar camufla a verdadeira natureza do problema [11] . A falta de hábito de calcular a quantidade de ar necessária para tocar as duas flautas tornava difícil não jogar pelo seguro nas frases anteriores mais curtas. A primeira tentativa de solução consistiu em procurar dosear as inspirações que antecedem o momento crítico, que é a pausa de semicolcheia em que a inspiração deveria ser completa. Procurei que em cada inspiração tomasse apenas o ar estritamente necessário para chegar ao fim de cada frase apenas com a reserva expiratória nos pulmões. Uma tarefa que não se revelou fácil dada a ansiedade e incertezas que ainda rodeavam a coordenação da melodia tocada numa flauta com o sinuoso acompanhamento da outra. O problema dissolveu-se no momento em que decidi dar a importância devida à melodia, tocando-a isoladamente para compreender o seu sentido musical. O procedimento seguinte consistiu em dedilhar o acompanhamento sem introduzir a flauta na boca, enquanto tocava a melodia com a outra tal, como descrevi acima.
Claramente o que não permitia que eu me concentrasse em não respirar precipitadamente era a leitura da frase seguinte. De facto, comecei a verificar situações em que há interferências com a respiração. Em peças a solo onde há pausas seguidas de contrastes súbitos ou movimentos rápidos, o silêncio é geralmente um momento de grande tensão musical. A imobilidade do executante é um elemento importante para criar expectativa e não denunciar o efeito de surpresa que se pretende. Observei em várias peças que abordei, a tendência para permanecer em apneia durante a pausa e inspirar súbita e bruscamente antes do ataque do gesto seguinte. Esta prática tem um duplo efeito negativo: por um lado denuncia o ataque do gesto seguinte, diminuindo o efeito de surpresa, por outro cria no executante uma tensão física desnecessária que erradamente se confunde com a tensão musical. Costumo dizer a alunos que ao tocar peças a solo têm esse hábito, que quem tem de reter a respiração é o público, enquanto o flautista respira calma e silenciosamente (se possível pelo nariz) sem que ninguém possa adivinhar o que se vai seguir. No entanto nem sempre é fácil ultrapassar o hábito de viver fisicamente a tensão musical durante a execução.

 

Cantar e tocar

 

Cantar e tocar simultaneamente gera alguma perplexidade no início, pois quando cantamos naturalmente, o ar que passa pela laringe é insuficiente para emitir uma sonoridade consistente na flauta. É assim necessário cantar, deixando passar uma quantidade de ar consideravelmente maior do que aquela que produziria a voz nas melhores condições. Depois de compreendido o mecanismo que permite dissociar a pressão do sopro da vibração das cordas vocais, torna-se possível variar a intensidade da voz independentemente da intensidade do som da flauta. No entanto cantar com passagem de ar na laringe é contrário à técnica vocal clássica e cria uma tensão considerável na garganta, quando feito num registo extremo, como acontece nesta peça.
O compositor pede que a melodia seja cantada na oitava real, portanto um flautista deve usar o falsetto. Eu conseguia cantar as notas mais agudas, mas se tentasse soprar e cantá-las ao mesmo tempo a voz ficava extremamente forçada e era-me impossível mantê-la durante mais do que uns brevíssimos momentos. Procurei usar os princípios da Técnica Alexander, procurando manter o pescoço descontraído, mas o que mais ajudou na primeira fase foi concentrar-me em não franzir o sobrolho no momento de cantar. Na realidade, procurava criar uma oposição entre a cabeça e a laringe. Mas a solução surgiu subitamente da primeira vez que toquei com tapulhos nos ouvidos. Ao tocar e cantar ao mesmo tempo, dois dos problemas são a afinação e o equilíbrio dinâmico da voz com a flauta: por vezes ao tentar afinar a voz, a pressão de sopro muda e a afinação da flauta muda. Por outro lado, em vários momentos as dissonâncias e sobretudo os intervalos de segunda entre a voz e a flauta tornam a tarefa complicada, pois há uma tendência instintiva para procurar um uníssono (ou eventualmente um intervalo consonante de 3ª m) entre a voz e o som da flauta. Nas notas longas a tendência de a afinação da voz mudar era muito grande. Ao tocar com tapulhos passei a ouvir muito pouco o som das flautas, ouvindo a voz em primeiro plano através das ressonâncias da cabeça.
As passagens indicadas forte levaram-me a esforçar-me demasiado, até que compreendi que o volume global é que era importante. Soprar mais para as flautas soarem mais forte tinha um impacto negativo na voz. Havia um ponto ideal em que voz e flautas soavam com presença, e as duas se distinguiam com clareza. Esse equilíbrio só foi encontrado quando toquei com os ouvidos tapados. Como não ouvia praticamente o som das flautas concentrei-me primeiro em colocar e afinar o melhor possível a voz. Surpreendentemente quando tirei os tapulhos e voltei a tocar procurando recriar as mesmas sensações, verifiquei que as flautas soavam inesperadamente mais do que o esforço investido levaria a supor e a definição dos timbres da voz e das flautas melhorara consideravelmente. Não sou ainda capaz de explicar aquilo que mudou, mas claramente houve uma aprendizagem implícita de uma coordenação das cordas vocais com o sopro que resultou totalmente diferente. A própria qualidade da voz deixou de ser tão forçada pela passagem do ar.
Tocar com tapulhos ou tocar uma das flautas enquanto dedilhamos a outra revelaram-se procedimentos experimentais extremamente eficazes. Quando ocasionalmente não conseguia colocar a voz, o uso dos tapulhos permitia-me recordar as sensações. São formas de focar a atenção em elementos específicos, durante uma execução global da tarefa usando modalidades diferentes de feedback. A voz era controlada através da audição e o movimento dos dedos através do sentido cinestésico.

A tensão musical, as intensificações dinâmicas ou rítmicas tendem a refletir-se no estado de tensão muscular do intérprete, como já referimos. Detetar as situações em que por razões musicais o estado de tensão aumenta foi uma das capacidades que desenvolvi ao longo da prática da Técnica Alexander. Ausser Atem foi uma das peças em que várias situações desse tipo se tornaram evidentes. Um exemplo é a secção I com as duas flautas a tocar notas sobreagudas, uma 4ª acima do limite tradicional da extensão. A convicção da enorme pressão necessária para as emitir, levou-me por vezes a exagerar levando a que a nota não saísse por excesso de pressão. A tentação de procurar sempre obter uma pressão superior à necessária, na ilusão de assim criar uma margem de segurança, muitas vezes era contraproducente. Aliada à complexidade métrica da passagem que leva a inspirar precipitadamente antes de cada pausa que antecede, está a tendência para contrair em excesso toda a musculatura expiratória momentos antes do ataque. É ainda necessário tirar alternadamente uma das flautas da boca de forma a que por vezes soem as duas flautas outras vezes uma ou outra. Para contrariar essa tendência, estudei a passagem do ponto de vista gestual, coreografando os movimentos das flautas que alternadamente tinha de retirar da boca. Depois trabalhei essa coregrafia emitindo notas mais graves. Poupei assim os meus ouvidos e os dos vizinhos a uma prática repetitiva que rapidamente se tornava insuportável.

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Idealmente a abordagem de uma peça, deveria consistir na construção de uma clara representação mental do resultado sonoro e do conteúdo expressivo. Perante uma linguagem nova que implica a aquisição de novas técnicas, a minha atitude inicial foi resolver as dificuldades uma a uma e esperar que à medida que o controlo fosse aumentando as decisões interpretativas fossem sendo tomadas. Apesar de sempre ter começado por procurar imaginar o efeito de cada secção ao embrenhar-me na prática de problemas novos, o conteúdo musical tendia a ser esquecido. Na realidade, qualquer decisão interpretativa implica alterações na coordenação motora que muitas vezes se tornam difíceis de aplicar a uma passagem que, em resultado de um trabalho minucioso, mas mecânico e destituído de preocupações agógicas, se automatizou. Daí a utilidade de uma alternância entre uma execução imbuída de sentido mas sem preocupações de perfeição no detalhe e um trabalho minucioso dos problemas específicos. Há muitas vezes a tendência para resolver primeiro os problemas ditos “técnicos” e só depois construir uma interpretação introduzindo elementos expressivos. Só depois de algumas execuções públicas de Ausser Atem comecei a ter uma noção muito clara de que muitos problemas “técnicos” se resolviam indiretamente pensando em questões musicais, alternando a prática global com a analítica, submetendo ou integrando as partes no todo.
A dificuldade dos movimentos perpétuos e ostinatos relegou a melodia para segundo plano. Quando assumi os ostinatos como um acompanhamento da melodia, a sua memorização foi facilitada e muitas inflexões motivadas pela melodia tornaram-nos mais interessantes e variados. Um trabalho isolado daquelas passagens aguardando a sua automatização para as juntar à melodia não foi a melhor estratégia. A atribuição do sentido expressivo deve estar sempre presente na prática e é um auxiliar precioso para a memorização e resolução de problemas.

Para finalizar, gostaria de dar um exemplo da importância de procurar determinar os fatores relevantes para o sucesso de uma determinada técnica, pois mesmo quando conhecidos, frequentemente diluem-se numa prática repetitiva obsessiva. Os sputatos [12]  da secção P eram poucas vezes praticados logo a seguir à secção anterior. Ao repetir os sputatos até conseguir um resultado satisfatório o fator relevante para o sucesso não se clarificou. Para conseguir o máximo de efeito sonoro com o mínimo de esforço, é essencial que a flauta esteja colocada em frente ao centro da boca de molde a receber o ataque percussivo da língua da forma mais direta possível. Como na secção anterior duas flautas são tocadas simultaneamente, cada uma delas está num canto da boca. Nessa posição os sputatos tinham pouco volume sonoro e as sucessivas tentativas eram no sentido de conseguir mais volume à custa de maior intensidade do ataque, maior esforço físico. Simultaneamente ia procurando uma posição da flauta, mas como os sputatos alternam com notas com flatterzunge nas duas flautas a recolocação da segunda flauta na boca complicava a perceção de qual o fator que melhor influenciava a qualidade dos sputatos: a posição da flauta ou a intensidade do ataque. Progressivamente fui-me apercebendo que o volume depende muito mais da posição e direção do ar do que da intensidade do ataque. Quanto menos me esforçava mais me conseguia focar na precisão da colocação da flauta.
Na primeira execução pública a quantidade de ar desperdiçado e o esforço despendido para que o efeito tivesse o impacto pretendido levou-me a terminar a passagem com tonturas provocadas por hiperventilação. Posteriormente, depois de descoberta a receita para minimizar o esforço e maximizar o efeito, a passagem tornou-se muito mais fácil. Para isso, o mais determinante não foi uma prática repetitiva dos sputatos, mas sim uma prática alternada que implicasse sucessivas mudanças na posição da flauta, ou seja alternar sputatos com ataques normais, até automatizar a transição. Assim que conseguia um sucesso, procurava “esquecê-lo” tocando normalmente e depois recuperá-lo.

 

Nota final

 

Os desafios que me colocaram estas três peças, permitiram-me repensar não só a minha técnica instrumental, mas também as minhas estratégias de estudo. O facto de, por vezes, me ter sentido um principiante foi enriquecedor, pois raramente revivemos as dificuldades que vencemos e muitas vezes esquecemos o processo de aprendizagem de tarefas básicas. Estas estão muitas vezes de tal forma automatizadas que perdemos o controlo consciente sobre a produção das nossas ações, perdendo a capacidade de realizar ajustamentos específicos.

"The key challenge for aspiring expert performers is to avoid the arrested development associated with automaticity and to acquire cognitive skills to support their continued learning and improvement". (Ericsson, 2006: 694)

Notas

 

[1] Lema de Moshe Feldenkrais, criador do método de reeducação somática com o seu nome: “To make the impossible possible, the possible easy, and the easy elegant.” (http://movement-works.com/quotes-by-moshe-feldenkrais/)

[2] De acordo com as instruções do compositor: “A version may include all the fragments or only a selected number of them. However, a shorter version should consist of at least 8 fragments. Each fragment to be played only once.”

[3] Texto original: “…the familiar amount of tension that ‘felt right’ to him was the unnecessary amount associated with the wrong habitual use of his mechanisms of which his stuttering was a symptom.”

[4] Texto original: “La perception de l’effort par celui qui l’accomplit proviendrait autant d’une anticipation de la force déployée que du retour sensoriel du mouvement produit.”

[5] Texto original: “One uses the very conditions that need re-education as one’s standards of judgment.”

[6] Texto original: “Everyone wants to be right, but no one stops to consider if their idea of right is right.”

[7] Tradução livre: “Um facto não deixa ser real simplesmente porque não o sentimos.”

[8] Rui Faria, o preparador físico do treinador José Mourinho, afirma: “Quando falamos de intensidade, falamos de intensidade de concentração, porque jogar [ou tocar] é fundamentalmente, pensar, e pensar exige concentração... Não é por isso, de estranhar que a fadiga táctica surja antes da fadiga física” (citado em Oliveira et al, 2006: 129).

[9] Recorde-se de passagem que o vibrato contínuo não é uma característica do romantismo, mas sim uma criação do século XX.

[10] “I felt as though I had reached a transcendental state, as though I was being played by the fugue”. (Bernstein, 1981: pp.229)

[11] Se os oboístas têm uma consciência clara deste tipo de problemas, pois o pouco consumo de ar obriga muitas a vezes a expirar o ar empobrecido em oxigénio que permanece ainda nos pulmões, antes de uma nova inspiração, para os flautistas esta problema não é tão frequente. 

[12] Este efeito é produzido articulando com a língua de forma percussiva, com os lábios entreabertos, de modo a que o som fique colorido com ruído de sopro

 

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